O Necromante

Escrever é um ato de violência. É preencher um vazio – o da página e o da alma. É como um micro Big Bang, em que o nada, ou a folha em branco, começa a ser rompido pela matéria que se expande e explode, em descontrole. As letras, sozinhas, são pequenas partículas que se atraem até formar corpos celestes, planetas, estrelas e, finalmente, galáxias (o quanto haverá de vida habitando estas galáxias, depende da qualidade do texto). A escrita tem muito pouco de harmonioso e pacífico.

Escrever para tentar prolongar a sensação experimentada durante um filme tem algo de desesperado, de perturbador. É como o amante que, depois de a amada atravessar a porta e ir embora pela manhã, vasculha o travesseiro, em busca de fios de cabelo e de perfumes da madrugada. Toda peça de crítica escrita é um pouco Kim Novak/Madeleine, e todo crítico tem a essência de Scottie. Vertigo, além de ser uma obra sobre a representação e o próprio cinema, poderia ser também sobre a crítica. Assim como o personagem de James Stewart, somos assombrados por uma imagem que já não existe, que caiu no vão cheio de armadilhas da memória. Queremos transar com a imagem da morta e, para isso, tentamos reconstruí-la. O vestido era dessa cor, o cabelo era desenhado daquela maneira. Blasfemos como os praticantes da necromancia, revivemos o cadáver para lhe tomarmos segredos, recitando em sussurro palavras secretas, tal um personagem de H.P Lovecraft, e não notamos que a luz esverdeada que emana do ser renascido e reflete em nossos rostos cheios de deleite nos deixa com um aspecto doentio de Dr. Victor Frankenstein, de desafiador das leis da natureza. O objeto de nossa criação não é o filme, e nunca será. Aquilo que está diante de nós são apenas palavras arranjadas da maneira correta, querendo se passar por alguém e algo que não é. Nunca, de fato, possuímos o filme. Chafurdamos na Vontade, esse sentimento que nos leva a querer irracionalmente e que, de maneira inevitável, nos impele à dor, amenizada apenas pela contemplação artística, segundo os pensamentos de Schopenhauer – e alguns de nós escolheram o cinema para anestesiar essa dor no membro fantasma.

A crítica é uma violação. Da página em branco, da ordem, da harmonia, da relação entre a obra e o espectador, da obra e o mundo (há relativa semelhança entre nós e o maníaco que invade o cemitério para violar caixões). Nenhum objeto artístico pede para ser revivido, desmembrado, explicado, desmontado. Se levarmos em conta o que disse Éric Rohmer sobre as grandes obras e o seu caráter intocável, cuja unidade ninguém pode separar, nos resta imaginar o quanto mais nefasta é a violação promovida por aquele que se atreve a adentrar a escuridão do cinema – ou do cemitério – e de lá sair com um membro roubado. Essa intervenção perversa que aplicamos no corpo alheio – a caneta é o bisturi, ou o teclado a mesa de operação -, esse delírio febril que nos faz querer descrever/dissecar imagens que muitas vezes nos assombram – Carlito Brigante, baleado, fechando os olhos lentamente até que o painel publicitário com a inscrição “escape to paradise” ganhe vida e mostre o desfecho feliz que Brigante poderia ter tido e não teve – sem que isso se configure em um processo de exorcismo ou cura, parece não ter qualquer propósito saudável. Para aquele que escreve, ao menos. Aliás, pouquíssimas atividades relacionadas direta ou indiretamente à criação são de todo saudável. A maioria delas lhe toma algo, seja o tempo, ou mesmo um pedaço da alma, o que é análogo a afirmar que o crítico expõe muito do seu ser em cada texto feito. Ao menos os textos motivados por todos aqueles motivos desligados de questões financeiras ou obrigações profissionais. Ter a obrigação de escrever sobre este ou aquele filme em cartaz é o mesmo que ter a obrigação de arranjar uma namorada. A única obrigação do coração é bater.

Por outro lado, sem a crítica – e essa é uma ideia largamente perpetuada – muitos filmes, diretores, atores e o que mais obcecar o necromante, estariam apodrecidos para sempre no fundo da terra. Há, portanto, algo de positivo nessa necromancia toda – mesmo que inúmeras criações da crítica não resistam ao tempo e retornem às cinzas rapidamente.

Note-se, nos parágrafos acima se desenhou a ideia de positivo e negativo. Não há diferença entre um e outro. Uma crítica positiva não é mais nobre do que uma negativa. Nas duas está presente o gene da violência. Ambas dividem o mesmo cromossomo. “A negação da violência em uma obra de paz compromete esta obra nas dimensões mais secretas de seu ser (...)”, escreveu Michel Mourlet. O equivalente se dá com a crítica: negar-lhe o princípio da desarmonia e violência é ser tragado de volta ao nada, ou, produzir um simples pedregulho espacial, sem força de provocar qualquer impacto na superfície do filme. Toda crítica, positiva ou não, procura furar crateras nos solos dos filmes ­- o que haverá no magma interior? É preciso, repito, querer furar a obra, violá-la.  Deixá-la, mesmo que apenas para si próprio, com aspecto diferente do inicial. A crítica não é um exercício acadêmico, que pode entrar e sair livremente de objetos artísticos sem sujar os pés. Um filme, depois de visto pelo necromante, deve ficar repleto de marcas de dedos – entre outras coisas.

Espero que isso seja considerado redundante, mas há sempre aqueles que ao invés de perfurar as ideias preferem achar buracos na argumentação. Para estes, é necessário fazer um adendo: a verdadeira crítica negativa a que me refiro é aquela que expõe um posicionamento e não apenas age como um mecânico de automóveis a apontar as peças que não estão funcionando. É Daney acerca de Tubarão, Rivette em “Da objeção”, Mourlet em “Sobre uma arte ignorada”, Sganzerla em “Persistência da retina”, e tantos outros. De alguma maneira, existe um ideal, mais do que um modelo, a guiar o pensamento daquele que escreve: o modernismo para Rivette e Sganzerla, o Maoísmo/estruturalismo para (esta fase de) Daney, o classicismo para Mourlet. Não é plausível imaginar aqui outra manifestação da síndrome de Madeleine/Scotty?

Talvez percorra nos subterrâneos desse texto a lava incandescente da nostalgia e do romantismo. Pouco surpreenderia se alguém lesse, por baixo das frases, um cântico mórbido de ode ao passado, à poeira, à ferrugem, ao verme que corrói o defunto (uns, exaltados, gritarão: CLASSISISTA!). É preciso olhar para o legado do cinema ao se querer entender o seu presente e o seu futuro, como escreveu, com brilhante obviedade, Michel Ciment. Em outras palavras, uma das capacidades do necromante é falar com os mortos para adivinhar o futuro.

Wellington Sari


 Abril de 2013