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                                                  Calac Nogueira: Falando dos filmes preferidos do  festival: para mim, os documentários foram melhores que as ficções. Isso não só  eu achei, mas outras pessoas também. 
    
                          João Gabriel Paixão: Sim, a própria Ilda Santiago veio  falar isso, que ela fez uma seção especial para documentários em função de ser  um ano bom para o documentário. Isso porque a gente nem viu O último dos injustos, que todo mundo  viu.  
 CN: É. Eu gosto muito de Em Berkeley, do Wiseman, e de Até  que a loucura nos separe, do Wang Bing. E tem O ato de matar, que é um filme que tem o seu interesse, embora eu  não goste tanto. 
                         JGP: Tem o Herzog. Então, até que teve bastante  coisa.  
                         
                        CN: Para mim, são os filmes mais fortes. 
                         JGP: Eu não vi Até  que a loucura nos separe, então é complicado.  
                         CN: Já entre os diretores de ficção, muitas  decepções. A Claire Denis... 
                         JGP: Você quer falar sobre o filme da Claire Denis?  Porque eu também não saberia te dar um exemplo de que por que os filmes de  ficção são piores que os documentários. Eu não tenho nenhuma teoria, nenhuma  hipótese a esse respeito. Ou então podemos falar sobre Um estranho no lago, de repente.  
                         
                         
                        Um  Estranho no Lago 
                         JGP: Em relação a Um estranho no lago, qual a minha implicância com o filme? Depois a  gente pode falar das qualidades, mas delas todo mundo já vai falar. O que eu  não gosto do filme é que ele é confortavelmente fechado em um mundinho, do qual  o diretor tem todo controle e distanciamento, e sobretudo quer me mostrar esse  controle e distanciamento. Ele tem uma história mínima, exatamente para poder  esgarçá-la e reforçar sua matemática de roteiro, narrativa e decupagem... 
                         CN: É meio minimalista. Tem poucos elementos. Tem  uma coisa que eu estava pensando desde ontem, que todo mundo elogia no filme,  que é a naturalidade com que ele filma as cenas de sexo. Tem essa naturalidade.  Mas eu acho que passa também pelo seguinte: um público mainstream de festival que está vendo pela primeira vez cenas de sexo  homossexual tratadas com essa naturalidade. Esses espectadores de festival  nunca tinham visto isso. Parece absurdo, mas aquelas imagens são, para um determinado  público, inéditas. Isso causa um certo deslumbramento. E o fenômeno não se  limita ao Guiraudie. A Cahiers colocou Deixa a luz acesa, do Ira  Sachs, no top 10 do ano passado. Não estou dizendo que esses filmes não tenham  méritos – eles têm. Mas existe também um deslumbramento de se estar vendo um  drama gay tratado com naturalidade, em filmes bem dirigidos o suficiente para  extrapolarem o caráter “de nicho”. Isso faz com que esses filmes ganhem mais  projeção do que possivelmente deveriam. Repare que a maneira como esses filmes  lidam com a sexualidade é muito diferente de um Almódovar, que era quem até  então conseguia trazer a homossexualidade para esse público mainstream, porém de uma maneira muito  codificada, exagerada, kitsch. Então, quando as pessoas elogiam a naturalidade  das cenas de sexo de Um estranho no lago,  eu acho que passa por esse momento, pelo fato de isso refletir perfeitamente o  momento da nossa sociedade, dessa nossa luta diária pela aceitação do  homossexual como algo natural. Eu fico pensando que o mesmo filme, com o mesmo  roteiro e a mesma direção, só que com casais heterossexuais, não teria o mesmo  impacto e certamente não seria esse acontecimento que foi no Festival.  
                         JGP: De minha parte, não tenho nenhum particular  deslumbramento com as cenas naturais de sexo homossexual, e não me imagino  vendo de forma diferente se fosse casais heterossexuais. Sexo é sexo. Mas isso  não importa. O que eu não gosto no filme, o que eu acho que falta para mim, é  que ele me parece todo muito arrumado para você fazer essa história mínima,  controlá-la perfeitamente, criar ali uma estrutura de não sei quantos dias, e  aí repete o mesmo plano, e aquilo vai até de noite, fica no dia, e vai mudando,  vai fazendo, como o Ruy Gardnier falou ontem, análise combinatória, com as  pequenas diferenças dos personagens você vai criando esse tabuleiro. E esse  controle é exposto, esse controle é autorreferente no sentido de que você tem  consciência dessa estrutura através desses planos. Mas o que eu quero procurar  nos filmes é uma visão do mundo, das coisas, e esse filme, pra mim, se fecha  ali naquela pequena historinha, cria essa arquitetura toda e serve para isso,  para você elogiar o controle. No final das contas, serve para você elogiar esse  controle. E não sou eu quem vai fazer um super elogio sobre este controle. É o  típico paradigma de filme de festival, no sentido que fecha o mundo a um  tamanho confortável onde possa se exercitar com a forma cinematográfica. 
                         CN: É estranho mesmo, a essa altura do campeonato,  em 2013, as pessoas ainda estão elogiando um filme que termina com final  lacônico, final aberto... Lembro de o Luiz Carlos Oliveira Jr. apontar isso  como um vício do cinema contemporâneo na época de Menina Santa, da Lucrecia Martel – ou seja, anos atrás. Essa  incapacidade de resolver o drama. Ou o fato de não resolver porque, no fundo, o  drama não importa. Mudando de assunto, o texto do Jean-Sebastian Chauvin na Cahiers fala que o filme faz uma  transição de uma coisa natural para uma coisa mental, de um universo natural em  direção a um universo mental “cosmogônico”, ele usa essa palavra. 
                         JGP: Não sei, isso seria realmente só o final, o  momento da matança e aquele final ali no escuro, o cara falando. Mesmo assim, não  sei se concordo com o Chauvin. Até pela luz natural, que predomina no filme  todo. Isso é muito importante. Enfim, o que eu estava falando é que a gente não  vê isso, um diretor que entende o cinema como uma abertura pro mundo. Ver  pessoas, ser um instrumento de conhecimento da realidade, sobretudo a ideia de  abertura. Em O Estranho no Lago, ao  invés de conhecimento, temos o reconhecimento: o reconhecimento da forma  cinematográfica (ou seja, a sua codificação, o seu apaziguamento), o  reconhecimento da “tese” entre desejo e morte, o reconhecimento daqueles  personagens (pode ser que alguns deles sejam engraçado – nem tenho certeza  disso – mas o conhecimento que temos deles é superficial, maneira de o diretor administrar  o seu controle). Bem diferente do que a gente vê na Breillat, no James Gray,  provavelmente nos documentários... Eu não vi o Wang Bing, mas certamente a gente  vê no Herzog. É o que me interessa. Para mim, o argumento-chave é esse. A gente  poderia destrinchar aqui os filmes, mas para mim isso é uma coisa que é chave.  Mas se você quiser falar outra coisa a respeito do filme, tudo bem. O meu  incômodo é esse. 
                         CN: É, eu também acho muito problemática essa  narrativa muito fechada. Mal comparando, chega a me lembrar de Cisne Negro, para falar de um filme que  era motivo de chacota para todos os críticos que hoje defendem Um estranho no lago. Digo isso não só  pela transição de um mundo real para um mundo mental, mas por essa narrativa  enclausurada que você aponta. Eu realmente acho que o filme faz essa curva para  uma coisa não-naturalista e fantástica. Isso não é um problema em si, mas ao  mesmo tempo isso traz um efeito pueril para o filme, para aquele final. 
                         JGP: Por que você acha tão fantástico assim? 
                         CN: Aquele detetive que chega abordando as pessoas  do nada. 
                         JGP: Eu posso achar meio esquisito, mas não chego a  achar fantástico. Eu acho os outros filmes do Alain Guiraudie mais fortes. O  que mais gostei é Os fortes não descansam.  Dá para perceber que é um diretor formalista, que se interessa em fazer uma  baita correção de cor na imagem... Ele filma externa, então pega a externa e  bota numa super luz mágica, mas depois, na pós, ainda vai pegar uma zona aqui  da imagem e escurecer muito mais do que a outra, o que claramente é artificial.  Você vê que é artificial. E aquilo forma um universo pictórico com aquele  espaço. Então, não é só a pureza da luz natural, ele vai para um outro lugar  com isso. E nesse espaço pictórico você fica realmente se sentindo além, você  não está mais no campo terreno, você está em outro lugar. E aí você fica  realmente delirando naquele espaço e com aquela história. 
                         CN: Você comentando desse filme me lembra Um estranho no lago. 
                         JGP: Por que te lembra Um estranho no lago? 
                         CN: Essa imposição... 
                         JGP: Ah, sim, essa imposição. Com certeza é o mesmo  diretor. Mas eu acho melhor, acho melhor porque é mais descontrolado, porque é  menos previsível. Você tem a imposição do diretor na imagem, e também na  história, em que os personagens se transmutam, mais ou menos como num filme do  David Lynch... um personagem está fazendo um tal papel, mas de repente está  fazendo uma outra coisa, e aí vai modificando. É um universo aberto, as peças  não se fecham. E é o prazer da surpresa dessa estrutura aberta, e também na  composição da imagem você tem o mesmo prazer dessa surpresa. 
                         CN: Em O Rei  da Fuga eu sinto um descontrole, mas ao mesmo tempo esse descontrole me  cansa também. Eu não desgostei do filme, mas me cansa, sinto uma fadiga com  aquele descontrole, acho que ele não funciona tão bem para a economia do filme.  Não achei tão forte, não bateu tão forte. 
                         
                         Bastardos 
                         CN: Bastardos,  da Claire Denis, pra mim é a maior decepção do festival. Um filme feito  totalmente no piloto automático. Pega os procedimentos que ela já usa em vários  outros filmes e coloca ali, mas não funciona tão bem. 
                         JGP: Eu fico me perguntando, Calac, que quando eu  começo a ver o filme e vejo aquele tipo de montagem, com aqueles cortes... 
                         CN: As elipses... 
                         JGP: As elipses. E, mesmo no interior de uma cena, o  posicionamento da câmera, pegando os personagens de costas, com a câmera  próxima, usando a câmera na mão... o laconismo da história que está começando.  E tem essa forma de filmar muito próxima do corpo, jump cut e tal. Nesse momento, eu nem sabia o que ia acontecer, mas  eu falei: “Pô, já vi isso antes.”  
                         CN: Mas ela está fazendo isso desde os anos 1990,  né? 
                         JGP: Pois é, mas eu fico me perguntando, e isso é  uma dúvida mesmo, que quando um diretor se repete, mas eu gosto dele, eu gosto  dele. Então, eu quero ver sempre. Ele pode fazer de novo que eu vejo e gosto,  me encanto, me surpreende. Então, eu fico me perguntando se eu gostaria também  dos outros filmes dela se eu voltasse a eles. O fato é que eu tinha com eles uma  fascinação pelo corpo e pela fisicalidade que eu não tenho nesse filme  absolutamente. 
                         CN: Tem uma coisa diferente se você pegar diretores  que têm um método. Por exemplo, o Rohmer, ou Brisseau, que são diretores que  você pode dizer que se repetem, o estilo é muito marcado, mas é um método de  filmar. E os filmes têm uma coisa de singular que escapa a esse método. A  impressão da Claire Denis é que esse... 
                         JGP: Esse método. 
                         CN: Aí é que tá, no caso da Claire Denis eu acho que  não dá para chamar de método.  Acho que é  outra coisa. É um estilo, mas um estilo que encobre o filme. É algo que ela usa  deliberadamente para causar um efeito estético. Não dá pra chamar de método  porque não é um ponto de partida. É um “fim”, algo que está no final da cadeia.  Algo que aparece na montagem para causar um efeito no espectador.  
                         JGP: Uma outra coisa que é um fato é que lá pelo  meio do filme, na segunda metade, eu já não estou mais prestando atenção nisso,  isso já não me incomoda, eu já entrei no filme. 
                         CN: Verdade, eu entro no filme. 
                         JGP: Sim, você entra no filme. Mas, ao mesmo tempo,  eu não gosto. Porque ela precisou de um tal nível de violência, de falar do  submundo, de ser barra pesada, para chegar nessa sensação desagradável de, sei  lá, da animalidade do ser humano. 
                         CN: Uma coisa interessante sobre o filme é que eu  não sei quem é o personagem principal. Não sei em quem está o olhar desse  filme. Num filme como Bom trabalho,  eu sei.  
                         JGP: Sim. Mas em um filme como White Material eu já não sei. Você diria que é a Isabelle Huppert? 
                         CN: Pelo que eu me lembro, sim. Já com o Vincent  Lindon e a Chiara Mastroianni você fica ali, entre um e outro... 
                         JGP: Só um comentário: mesmo no caso do Bom trabalho e do White Material, cada personagem tem um mundo. Você pode dizer que o  personagem da Isabelle Huppert é o principal, mas quando você está no  Christopher Lambert, você está no mundo dele. E nesse filme é a mesma coisa.  Você está com a Chiara Mastroianni e você tem o mundo dela. Aquela garota, Lola  Creton, tem um mundo. Cada um tem um mundo próprio. 
                         CN: Isso é bom, né? Falando assim, parece forte. 
                         JGP: De fato, é uma característica dela. Mas fala o  que você ia falar. 
                         CN: Em Bastardos,  eu fico com a impressão de que o filme está escondendo o jogo do espectador. Eu  não consigo sair do filme sem essa sensação, que talvez já dê para sentir em  outros filmes da Claire Denis. Mas nesse filme me incomodou. Tem uma trama que é  óbvia, que está ali na sua frente, mas que você não enxerga, porque ela esconde  alguns elementos para te dar no final. Ela é assim, os filmes dela são assim.  Mas de alguma forma isso me incomodou mais nesse filme.  
                         JGP: Lembro que uma coisa que eu achei muito forte  no White Material era a indiferença  que as pessoas tinham em relação à violência. E aí eu lembro de um plano  arbitrário, que dura cinco segundos, que tem uma mulher negra, africana, que  está com uma metralhadora no colo, descansando, no banco do carona em um  caminhão. E aí a Claire Denis primeiro mostra ela com aquele rosto fatigado, e  de repente faz um tilt, um tilt convencional, mostrando a arma dela  repousada no seu colo. Isso é um olhar... Essa pessoa que mata, que tem uma  metralhadora, ela também está cansada. E ela mostra a indiferença –  e no melhor sentido da palavra “indiferença” –  das pessoas àquela violência. A violência se torna uma questão inevitável e  contingente daquele espaço, e é isso que dá a força do filme dela, através  dessa indiferença. Em Bastardos, eu  acho que já não tem mais tanto essa indiferença, no sentido de que não está tão  naturalizado. Não está, por exemplo, para o Vincent London, absolutamente. Ele  está ali chocado com aquilo. 
                         CN: E o filme tem um vilão, né? 
                         JGP: Tem um vilão. Não tem vilão em White Material. Não tem. E por causa  disso eu acho que você reforça o aspecto “barra pesada”, e resvala em algo  exagerado, apelativo. 
                         CN: As histórias das espigas de milho. 
                         JGP: Não só, tudo ali que acaba sendo construído em  torno daquela ruína, que é a trama central, digamos assim, eu acho apelativo. 
                         CN: É a trama central que na verdade fica invisível durante  90% do filme. 
                         JGP: E aí saem da sessão e cada um falando uma  desgraça e uma escrotidão do ser humano. “Ah, vamos escrotizar!” O Ruy Gardnier,  por exemplo, teve a sacada falar que eles usam espiga de milho porque o pau  deles não sobe. 
                         CN: Mas isso não está no filme. E eu acho que o  filme não tem esse moralismo. 
                         JGP: Tudo bem. Mas e o momento em que a Chiara  Mastroianni mata o Vincent Lindon? Na hora, eu, ingênuo, achei que foi um  acidente. Achei que ela ia querer matar o velho. 
                         CN: Para mim, não. Aliás, muitos cineastas já  fizeram a mesma cena. O que é a cena? Tem duas pessoas lutando e alguém vai  mirar em um deles, e ela não sabe em qual atirar até o momento em que aperta o  gatilho. E o momento em que ela aperta o gatilho é o momento em que se revela  uma verdade interior, em que ela faz essa escolha, no instinto, de quem matar.  Um milhão de cineastas já filmaram a mesma cena, e isso é mais um ponto  negativo para o filme, é um clichê. Para mim, ela escolhe matar o Vincent  Lindon. 
                         JGP: E escolhendo matar o Vincent Lindon ela se  torna cúmplice dessa escrotidão da humanidade mostrada pelo filme. 
                         CN: Claro, porque ela não mata o vilão. 
                         JGP: Exato, então tem um vilão e tem um cara que é  mais gente boa, que é Vincent Lindon. 
                         CN: É, a escrotidão, no final do filme, permanece no status quo, ela se mantém. (risos)  Mas olha em que termos a gente está falando do filme da Claire Denis, isso é  muito tosco. 
                         JGP: Exato, era isso que eu ia falar. O fato de ter  um vilão, essa dualidade mais banal... 
                         CN: Isso é surpreendente para um filme da Claire  Denis, né? E é muito ruim.  
                         JGP: É ruim. E para mim inclusive fica moralista –  ou, pelo menos, apelativo. 
                         CN: Moralista eu não acho. 
                         JGP: No sentido de “Esse é o bonzinho, mas o  bonzinho vai se foder. Ele vai ser morto por quem você achava que era boazinha,  mas na verdade não é. E essa história é muito barra-pesada, niilista, u-hu!” 
                         CN: Sobre a coisa da barra-pesada, eu acho que ela  tem esse gosto pela violência. Se você pegar Trouble Everyday... Eu vi esse filme há muito tempo, mas pelo que  lembro também tem esse flerte com essas imagens. A violência é um pouco a  matéria do filme. 
                         JGP: Mas o que eu estou falando do White Material é que a forma como ela  lida com a violência é uma forma que passa pela naturalização da violência  naquele espaço, naquele lugar. E é isso que é forte. Não é o conteúdo da  violência que importa, mas o olhar sobre ela. Em Bastardos, há sempre a factuidade, parece que só isso que importa:  “fulana matou”, “cicrana se prostituiu”. Parece um jornal de fofocas levado ao  extremo do submundo como se isso expressasse alguma metafísica que seja  conveniente, como a bestialidade humana ou a crise europeia. 
                         
                         O  Imigrante 
                         CN: Com o James Gray eu me decepcionei também. 
                         JGP: Uma coisa em que a gente insistiu em outra  conversa, num outro dia, é que o roteiro é meio estranho. Você tem aquele  impasse na personagem da Marion Cotillard porque ela não consegue fugir da  condição da prostituição. Acontecem algumas coisas: ela foge, vai para a casa  do tio e depois é presa... Depois, quando vem o Jeremy Renner e se cria um  triângulo amoroso, o filme cresce pra mim. A gente estava falando sobre o fato  de que parece que o filme não tem um protagonista... O protagonista é ela, mas  o Joaquin Phoenix exerce uma influência constante também. 
                         CN: Quem ocupa o lugar central na narrativa, se você  pegar estatisticamente nos planos, no roteiro e nas cenas, é ela. As cenas são  dela, e ela é a protagonista do filme. A gente segue ela: ela vai na caso tio,  é presa, o tio entrega ela, e aí nós vamos para o presídio com ela.  
                         JGP: Mas você considera o personagem do Joaquin  Phoenix mais complexo. 
                         CN: Sim, é isso que a gente estava conversando ontem.  Isso foi uma coisa que o Ruy Gardnier falou: o James Gray lida melhor com  personagens masculinos. Eu concordo, acho que ele não lida muito bem com essa  personagem feminina. 
                         JGP: Ela é meio chapada. Parece obstinada naquilo de  querer libertar a irmã, querer a própria liberdade... 
                         CN: Mas o problema não é ela ser chapada. Porque no  final, quando o filme cresce, ela permanece sendo aquela figura ali mesmo. Só  que de alguma forma... O filme é sobre o quê? É sobre a chegada daquela  personagem ali, surgida do nada, no porto, para salvar o personagem do Joaquin  Phoenix. A moral do filme é essa.  
                         JGP: Ela salva o Joaquin Phoenix? 
                         CN: Ela faz ele se apaixonar por ela. Ele é um homem  mau que se vê apaixonado diante dela, e ela é essa figura enviada para salvar  ele. Só que isso só está no final do filme. 
                         JGP: Não sei. O filme não fecha isso. Ele não se  torna uma pessoa boa. Eu acho que o filme é sobre aquela questão dela... Ela  quer ficar junto com a irmã e sair. Ela conquista isso no final e acabou o  filme. É isso. Só que tem uma série de correntezas que passam por baixo da  narrativa. Parte da complexidade da personagem da Marion Cotillard é justamente  quando vem o Jeremy Renner, e para mim ela não está nunca apaixonada por ele  também. E, ao mesmo tempo, ela cai um pouco na lábia dele... 
                         CN: Porque ela é essa pureza, ela é essa personagem  pairando ali. Só que o filme não sabe muito bem como filmar essa pureza. Ele  não faz isso bem. 
                         JGP: Eu não sei se ela é pura. Eu acho que ela  carrega uma nuvem, uma indefinição, é uma personagem um pouco nublada entre a  gente e a tela. A gente não se identifica com ela em momento nenhum – como a  gente se identifica, por exemplo, com o personagem do Amantes. A gente entra na trajetória dele. A gente acha que ele vai  ficar com a Gwyneth Paltrow.  
                         CN: O filme tem esse problema de olhar também. Os donos da noite tem um olhar. 
                         JGP: Quando você diz “um olhar”, você quer dizer...? 
                         CN: Tem um protagonista, que é o Joaquin Phoenix, e  você segue ele. 
                         JGP: Você segue ele e entra junto com ele. Sim,  então no Amantes você está lá e você  acha que ele vai ficar com a Gwyneth Paltrow. E você se ferra, você se fode  junto com ele. “Putz, como é que ele não ficou com a mulher? Ela saiu com outro  cara! Putz.” Você está sofrendo junto com ele. Nesse filme não, ele não tem  isso, não é para ter isso. As ambiguidades estão mais acentuadas. A Marion Cotillard  não confia em momento algum no Joaquin Phoenix, mas confia no Renner, que  conhece rapidamente, ainda que não esteja absolutamente apaixonada por ele. O  Phoenix, com certeza, é o personagem mais complexo. Essa sutileza da  construção, essa ambiguidade que dá ações humanas inesperadas, que cria uma  nuvem de opacidade ao longo do filme, este é o interesse o olhar próprio do  Gray. 
                         CN: Pois é, e ela é essa personagem que passa  incólume por tudo, que não se apaixona por ninguém e só tem uma meta na vida.  Por isso o filme é um pé no saco até 1h30. (risos) Estou exagerando. 
                         JGP: Agora, e o lado da elegância, da fotografia?  Esse lado aí. 
                         CN: Tem esse lado. “Ah, o último plano é lindo.” As  pessoas repetem isso pra caramba. 
                         JGP: E realmente é. 
                         CN: É lindo, pô. Mas sei lá... Tá, o plano é forte,  não é só bonito. Ele é forte, ele diz alguma coisa. Os personagens estão se  separando. 
                         JGP: O Sérgio Alpendre gosta de falar “Nossa, ele  filma muito bem. Plano-contraplano, como ele é clássico! Como ele é preciso!”  Eu não sei se eu tenho um interesse particular por isso, por essa precisão  técnica toda. 
                         CN: Mas pra mim precisão tem não tem a ver com  elegância, mas com precisão dramática. Os planos têm que ter uma precisão  dramática. Se o filme, como a gente está discutindo, em termos de dramaturgia,  de roteiro e da interação dos personagens, é problemático, se ele não anda tão  bem quanto outros filmes, não é a mise en  scène que vai salvar isso. 
                         JGP: Mas além disso eu tenho a impressão, e isso é  uma questão em aberto pra mim e eu acho que pra você também, do quanto que  entra de estilo do James Gray para revestir esse material dramatúrgico. O  quanto entra desse estilo. Quer dizer, tem uma luz sempre muito dramatizada,  contrastada. E outros elementos fotográficos... 
                         CN: A fotografia do filme é muito bonita. Mas ela  não me diz algo de específico, como me diz, por exemplo, a fotografia de Caminho sem volta, no qual ele está  usando a luz o tempo todo. O James Gray deveria fazer um filme de baixo  orçamento. 
                         JGP: Você acha que um orçamento alto atrapalha? 
                         CN: Não, não acho. Não é isso. Mas... É um filme de  época... Um filme de época: eu acho que de alguma forma o filme tem ali um  prazer de filmar certas coisas que, de repente, se fosse um filme  contemporâneo, seriam motivos banais. Acho que o filme do James Gray não  consegue se desfazer muito dessa solenidade, o filme é um pouco distanciado. Os  melhores filmes de época são os que conseguem se desfazer dessa pompa “de  época” e que conseguem filmar a coisa de uma maneira natural, exatamente como  se fosse um filme contemporâneo. Isso pelo menos os filmes de época que eu  gosto. Os filmes de época do Rohmer, entre outros... Um comentário maldoso  sobre o James Gray: ele tem que se desprender do alto orçamento e se desprender  do Joaquin Phoenix para a gente ver o que sobra. Se desprender de tudo para vermos  o que sobra. 
                         JGP: Seria interessante. 
                         CN: Seria um bom exercício. 
                         JGP: De qualquer forma, eu acho que, por mais que o  Joaquin Phoenix seja fodaço, ele sobrevive. 
                         CN: Ele sobrevive, ele é foda. 
                         JGP: Ele sobrevive sim. Seria interessante ver esse  filme.   
                         Tip  Top 
                         JGP: Eu pensei em falar do Tip Top. Pensei nele quando a gente estava falando desse esforço de  “ser” alguma coisa. Acho que o Tip Top tem esse esforço. Não um esforço, mas ele é quase um exercício de comédia. Ele  não é só uma comédia, mas um exercício de comédia. “Eu vou pronunciadamente  fazer um ritmo muito ágil, bem estranho, e lidar com todas essas situações, as  mais variadas e as mais loucas.” Uma coisa meio de exercício. “Ah, vamos criar  aqui, e aí ela vai pingar o nariz...” 
                         CN: Não é orgânico. A narrativa não é orgânica. Ela  é uma coisa completamente inorgânica. E isso na própria maneira de filmar. Você  não tem uma narrativa orgânica onde as gags vão aparecendo... Mas eu gosto do filme. 
                         JGP: Você gosta do humor? Você riu bastante no  filme? 
                         CN: Nem tanto. 
                         JGP: Isso não é ruim.  
                         CN: Eu ri mais no filme do Alain Guiraudie.  
                         JGP: Você riu bastante no filme do Alain Guiraudie?  Eu acho engraçado, vocês estavam comentando sobre o humor do Guiraudie... Eu  não rio muito, não lembro de ter rido no filme. 
                         CN: Principalmente quando ele está apresentando  aqueles tipos, aquela fauna gay, eu acho muito engraçado. 
                         JGP: É, todo mundo ri naquela hora em que o cara  está procurando mulher. 
                         CN: O cara procurando mulher, o gordinho que fica se  masturbando de pau mole... O próprio amigo dele, o Henri, que fica lá de lado, de  braço cruzado, eu acho ele muito engraçado. Eu preciso de umas três aparições  dele para naturalizá-lo como alguém na narrativa, como alguém que vai ser  desenvolvido ali. 
                         JGP: Isso é legal. Eu não tive isso, não fiquei  assim não.  Eu acho que a minha sessão  também não ficou assim. Porque as pessoas riem coletivamente, né? E eu não  lembro de as pessoas rirem do filme na minha sessão. A comédia tem essa coisa  de ser coletiva. Mesmo que você não ria, se está todo mundo rindo, você já sabe  que as pessoas acham engraçado. No Tip Top as pessoas também não estavam rindo não. 
                         CN: Uma coisa que eu acho legal no Tip Top, mas aí é muito do contexto  francês, é a questão de uma França branca com os árabes. Isso é uma questão  cara. E eu acho que o filme lida muito bem com isso. 
                         JGP: Lida sim. Ele pega a polícia, não pega qualquer  um. E a polícia tem relação com os árabes, uma relação boa. 
                         CN: É, uma relação boa. Mas, ao mesmo tempo, são  dois grupos separados. É o ponto de partida: são dois grupos separados. Nós  estamos aqui na França e temos os árabes e os franceses. Esses grupos não se  misturam, mas eles mantêm uma relação complexa, que envolve uma solidariedade e  trocas de favores dentro da polícia, com o informante. Mas, ao mesmo tempo,  eles não se misturam. E eu gosto muito daquele personagem do François Damiens  tentando compreender e se aproximar dos árabes, lendo aquele livro. 
                         JGP: Sim, eu acho que não é qualquer um que jogaria  esse tipo de olhar na tela. Todo mundo está aí falando de imigração, mas é o  tal negócio: ou é a vitimização, ou alguma coisa.... 
                         CN: Pior. A vilanização... (risos)  
                         JGP: O que no filme do Bozon não é absolutamente.  Existem ali os árabes na França, no banlieue. 
                         CN: E ele toca nos problemas todos. 
                         JGP: Com certeza. E ao mesmo tempo tem uma  naturalidade. Isso entra ali no turbilhão do filme. Você considera o filme uma screwball comedy? Ou você acha que é uma  homenagem à screwball comedy? 
                         CN: Acho que é uma screwball comedy de segunda linhagem, porque eu não sinto como uma  coisa orgânica como sinto nos filmes do Howard Hawks.  
                         JGP: Exatamente. Você vê aquele filme do Hawks dos  jornalistas, Jejum de amor. É super corrido,  está todo mundo falando rápido. Mas é incrivelmente orgânico. É aquele  controle. Sensacional. Isso o Tip Top não tem, mas eu não diria que é por falta de talento. Eu acho que ele quer  fazer dessa forma. 
                         CN: Ele tem uma forma de filmar que é meio teatral.  Um distanciamento, os planos mais abertos... 
                         JGP: É bem teatral, mas tem outra coisa. É que ao  invés de ele estar pensando na unidade, no todo do filme, ele está pensando  cena a cena e, dentro da cena, plano a plano, cada um dos seus elementos. Ele  vai filmar esse plano X com aquele policial corrupto ligado aos árabes, aí o  enquadramento vai ser assim para ser engraçado, vai ter tal ritmo. É  meticuloso. Plano a plano, cena a cena, é uma decomposição do filme. É um  trabalho de decomposição. 
                         CN: Sim, também sinto isso. Não é uma decupagem, é  uma decomposição. É bem esquisito, gera um efeito bem esquisito. O que é  interessante. 
                         JGP: É inevitável pensar no Blind Detective, que você não viu. Só vou comentar rapidamente.  Porque é uma comédia, e até dá para dizer que é uma screwball comedy, com uma história de detetive. Então, é inevitável  pensar. Mas é engraçado que o Johnnie To já está mais inserido organicamente no  gênero. É uma comédia policial como qualquer comédia policial. Mas também têm  coisas loucas no filme, eventualmente até meio surreais, meio exageradas de  propósito, supra reais. Umas cosias absurdas, escrachadas. O filme não tem um  limite nada claro entre o total absurdo e burlesco e o naturalismo de  identificação. Mas, ao mesmo tempo em que o Johnnie To faz um filme muito ágil,  muito absurdo, tanto quanto o Serge Bozon, ele também já está ali como mestre  daquele gênero. Não é um humor em decomposição, externalizado, “para fora”,  como no Tip Top. O To passa o prazer  de estar no gênero e de ser um mestre nele; mestre a tal ponto que pode passear  entre a zona crível, do naturalismo já codificado, de personagens de motivações  reconhecidas, com outra zona, do exagero de virtuosismo dos personagens, a ação  desvinculada da motivação através do burlesco, do absurdo. Mas é um passeio de  um lugar a outro, porque a própria zona “crível” já contém e é permissiva a um  mundo idealizado, mítico. Enquanto no Bozon não é um passeio; é uma imposição.  Ambos os filmes são muito ágeis, é uma agilidade artificial, mas no Bozon isso  é mais imposto. Não acho que seja uma comédia, mas uma comédia sendo vista,  sendo externalizada, exposta, evidenciada. To guarda seus segredos do mestre do  gênero; Bozon não tem segredo algum para guardar, assim como a realidade que  filma e arquiteta. Pode-se dizer que To seja um cineasta do gênero e Bozon um  cineasta de autor. O Filipe Furtado, na critica da Cinética, fala que Tip Top é um impasse entre o cinema de  autor e o cinema de gênero. Faz sentido, mas, de qualquer forma, o fato de ele  estar nesse impasse, de alguma maneira, já me remete mais a um cinema de autor.  Bem, eu certamente prefiro Blind  Detective.
  
                         Parte 2: Night Moves; Hong Sang-soo; A Garota de Lugar Nenhum; Em Berkeley; Corredor da Morte; Educação Sentimental; Abuso de Vulnerável 
                           
                           
                          
                            Dezembro 
                            de 2013 
                           
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