Vertov Inventor

Bernardo Oliveira

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Dziga Vertov em 1920

Quem é Vertov?

Filho de judeus intelectuais residentes em Bialystok, Dziga Vertov nasceu Denis Kaufman em 1896. Estudou música no conservatório da cidade até a invasão alemã que o obrigou a mudar-se para Moscou. Lá, trava conhecimento com o Futurismo de Marinetti, enquanto se dedica à poesia e à ficção científica. Neste momento adota o pseudônimo: Dziga Vertov, uma tremenda ironia. Vertov é derivado do verbo girar, rodar ou fazer rodar; Dziga, segundo o próprio, é a onomatopéia do girar da manivela em uma câmara (dziga, dziga,...). Dziga Vertov, como uma máquina que ainda não filma, mas registra e percorre o mundo com os olhos, um ser-máquina, um nome que "baixa o santo". Em 1916 vai para St. Petersburg estudar medicina, ao mesmo tempo que inicia experiências de montagens a partir de gravações sonoras. Dois anos depois dá partida na carreira cinematográfica como diretor do primeiro programa oficial de atualidades, o cinejornal Kinonedelia (ver Manifestos). Conhece sua futura colaboradora e esposa, Elizaveta Svilova, com quem formará mais tarde o Conselho dos Três. Em 1922, batiza seu trabalho próprio Kinopravda, em homenagem ao jornal fundado por Lenin. Vertov, seu irmão Phillip Kaufman e Elizaveta formam o Conselho dos Três acerca dos trabalhos do Kinopravda. Em 1922 publicam a Resolução do Conselho dos Três, decretando a morte do cine-drama alemão e da "ausência de fundamento do cinema americano", embora o próprio manifesto faça ressalvas sobre "a velocidade das imagens e os grandes planos".

O relato de seu primeiro contato com o cinema revela já certas concepções futuras. Ele narra:

Eu lembro de meu debut no cinema. Foi totalmente estranho. Não envolveu uma filmagem mas um pulo, uma das mil e uma estórias de uma casa de verão ao lado de uma gruta (...)

O cameramen havia pedido para gravar meu pulo de modo que toda queda, minha expressão facial, todos os meus pensamentos pudessem ser vistos. Fui para cima da gruta, em sua beirada, pulei, gesticulei como se fosse um véu e caí. O resultado, em filme, foi o que descrevo abaixo:

Um homem se aproxima à borda da gruta; medo e indecisão em sua face; ele pensa "não vou pular". Então, decide: "Não, será embaraçoso, todos estão vendo." Mais uma vez ele se aproxima da borda, mais uma vez ele mostra indecisão. Então, sua determinação cresce e ele diz para si mesmo, "eu devo," e deixa a beirada da gruta. Ele voa através do espaço, voa sem equilíbrio; acha que deve se posicionar para aterrizar em pé. Ele se ajeita(...), mais uma vez sua expressão revela indecisão, medo. Finalmente seu pé toca o chão. Imediatamente constata que manteve o equilíbrio. Depois acha que pulou bem mas não deveria tê-lo feito como um acrobata que executa uma manobra complicada no trapézio, e finge que foi terrivelmente fácil. E com essa expressão ele flutua lentamente."

Do ponto de vista do olho ordinário vemos mentiras. Do ponto de vista do olho cinemático (auxiliado por métodos cinematográficos especiais, neste caso, filmagem acelerada) vemos verdades. Se é uma questão de ler os pensamentos de alguém à distância (e muitas vezes o que nos interessa não é ouvir as palavras da pessoa, mas ler seus pensamentos) então, eis a oportunidade. Ele pode ser revelado pelo Kinoglaz (o cine-olho).

Podemos dizer que, nesta casa de veraneio, muitos dos conceitos inventados por Vertov para servir ao seu sistema, foram intuídos. O cine-olho nada mais é do que a substituição da percepção humana, por ele considerada defeituosa e por demais "psicológica", pela perfeição da máquina. Vertov chega a clamar por uma sociedade elétrica, cujo homem ideal seria o homem máquina; o valor da máquina, sua exatidão, estaria atrelada não a "produtividade", mas à consciência de uma mudança de comportamento:

Ao revelar a alma da máquina, promovendo o amor do operário por seu instrumento, da camponesa por seu trator, do maquinista por sua locomotiva, nós introduzimos a alegria criadora em cada trabalho mecânico, nós aproximamos os homens das máquinas, nós educamos os novos homens.

O novo homem, libertado da canhestrice e da falta de jeito, dotado dos movimentos precisos e suaves da máquina, será o tema nobre dos filmes.

Vertov não prega uma sociedade cibernética. Ele pensa o cinema como arma contra a dominação; como organismo autônomo que não carece do "auxílio" de outras artes. Como forma de suplantar a ignorância e de arregimentar pessoas contra a exploração, o vício, a religião.

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Entusiasmo, 1930

Entusiasmo ou Sinfonia dos Donbas, filme de 1930, trata objetivamente desta superação. Nas primeiras cenas, somos chamados à realidade: Vertov nos mostra a religião que prejudica os princípios de uma revolução, os bêbados e drogados sem lar, alienados de suas potencialidades. As cenas são montadas como um imenso "estado", uma situação de caos e miséria, a princípio, irreversível. Depois, vemos pessoas que auxiliam os bêbados, tiram-nos das ruas. Igrejas são destruídas pelo povo e sentimos uma mudança nas vibrações do filme. O estado de antes, tão pesadamente composto, começa a se dissolver. Corta: vamos visitar as cooperativas agrícolas onde o trabalho comunitário é enaltecido como forma de superação. Não é uma apologia do trabalho, mas uma concepção de trabalho. Em Vertov, a nova sociedade sublima o trabalho para superar a escravidão, isto é, trabalham para afirmar a liberdade e a responsabilidade pelo futuro. Ora, quem nos ouve tecer tais comentários sobre o filme pode imaginar Vertov um capitalista pregando a moral do trabalho ou um comunista buscando levar a revolução à frente. Não! As cenas poderiam ser dispostas de modo panfletário, mas são inusitadamente "musicais". Os sons captados não soam como trilha sonora ou sonoplastia: são o "interior" da cena, isto é, não servem como complemento dramático, mas como um elemento imprescindível na composição. Os intervalos são articulados, então, como forma de obter uma canção visual, arte do movimento, onde a música e a sensação "teatral" dos movimentos corpóreos são cinema. A composição vertoviana supõe uma outra relação com a imagem, que não a corriqueira, encharcada de plano americano, campo/contracampo e close-up, sem que nisso haja demérito. Somente obtemos em Vertov algo diverso deste esquema e que exporemos abaixo.

Por que Vertov?

Por que falar de Dziga Vertov, um cineasta praticamente aterrado pelo afã neoliberal, junto com boa parte do cinema da década de 20? Hoje as evidências por ele apontadas são problemas fora de questão. Não exatamente por sua irrelevância, muito pelo contrário. É que talvez não caiba neste mundo pensar os vícios da imagem, nem questionar a forma do cinema, nem o fator social que emerge de olhares pouco mais atentos às "sutilezas" da indústria.

Um belo dia, ouvimos falar do poder da mensagem "subliminar". Dizem que podemos passar informações não evidentes, através de imagens simples. Por exemplo, quando os EUA perderam a paciência com o Kadafi e distribuíram pelo mundo fotos estranhamente compostas. Teriam escrito, em tamanho microscópico, "kill him", "destroy him" na cara do sujeito, suscitando a concordância mundial com seu extermínio. Dito e feito, mas qual será o teor de verdade desta mensagem subliminar? Sutilezas da imagem, cujo enfoque não cabe num jornal de cinema? Como não? Vertov foi o homem que buscou uma pragmática do cinema e, como conseqüência, precisou determinadas fronteiras.

Buscar uma pragmática do cinema implica discutir o valor da imagem: o que pode a imagem? Ou melhor, quais os limites que uma imagem em movimento, articulada com outra imagem em movimento impõe aos nossos sentidos? A um tempo Vertov limitou os procedimentos (ver os Manifestos) e instaurou uma ordem cinematográfica. Mas, vejamos: quando pensamos Spielberg, há um cinema do entretenimento, mas não é tão simples assim. Há um profissão de fé, mesmo que em forma de pressuposto, inaudita. Como se pudéssemos afirmar que Spielberg filma o sonho, mas o sonho filmado é meramente composto pela articulação de imagens em estreita relação com clichês da imagem. Neste sentido Spielberg é um cineasta "histórico", pois prolonga uma tradição, embora lance mão de criativas reformulações. Scorsese realiza processo idêntico, genial. Altman. Fritz Lang, em Metrópolis acredita num poder da articulação das imagens, pois deliberadamente discute com o espectador. Ou não? Quando expõe os modos intempestivos de um futuro próximo, não acredita silenciosamente no seu poder de "dialogar" com o espectador, fazendo-o tomar consciência de um problema? A discussão é longa pois, como o quis Bazin, podemos remeter à invenção da perspectiva e a toda pintura ocidental. Mas não se trata disso. É um problema de representação, mas somente na medida em que haja já uma fotografia, a consagração de um ideal.

Uma imagem em movimento, perguntamos novamente, qual seu valor? Articulada com outra faz jus ao conceito de montagem, tanto em Vertov quanto em Spielberg. No entanto podemos perceber uma clara distinção entre o valor da imagem para Spielberg e o valor da imagem para Vertov. E chamamos valor não a questão "artesanal", isto é, o trabalho técnico com a imagem, mas o que responderia a pergunta: o que direi com esta articulação? A elaboração de clichês permite estabelecer um leque de opções para quem inventa, para quem copia e para quem mistura os dois. Vertov se distancia do mundo quando busca outros pressupostos da imagem que não são nem os de contar histórias, nem os de comunicar, mas os de fazer emergir no espectador uma "consciência" da imagem. Isto quer dizer que, a partir do momento em que concordamos com o jogo de articulações, que é o cinema, tomamos consciência de um fato, um objeto, um acontecimento. Para Vertov a "consciência" residiria no reconhecimento de uma dança, ou melhor, no reconhecimento de uma expressão do movimento, que também narra fatos, acontecimentos, etc.. Neste sentido, as articulações (ou, como as palavras de Vertov, os intervalos) são reconhecidas coletivamente por sua forma: o que representam. Ele expulsa toda teoria da "complacência" do espectador, ou seja, acompanhar segmento por segmento engendrando sentidos, e troca por uma tomada de consciência das articulações. Ele faz emergir a montagem, não como jogo de esconde-esconde, mas como tomada de posição. Para Vertov o espectador assistiria filmes sob uma dupla "consciência": uma que rejeita os clichês em prol de outras possibilidades de articulação, isto é, um espectador em busca de um cinema "arte da montagem", procurando firmar-se dentro de suas propostas sem recorrer à procedimentos alienígenas como o teatro e a música;

"Nós protestamos contra a miscigenação das artes a que muitos chamam de síntese. A mistura de cores ruins, ainda que escolhidas entre todos os tons do espectro, jamais dará o branco, mas sim o turvo."

Outra que estabelece uma temática que foge do mesmo assunto em busca de um ideal absurdo, transformar o mundo e, sobretudo, nossa percepção do mundo.

Alguns pensarão na "materialidade" da imagem, outro segmento explorado por René Clair, Germaine Dulac, Man Ray e todos esses poetas. Jean Cocteau busca uma poesia do movimento assim como os primeiros Buñuel e toda a vanguarda francesa. A poesia vertoviana difere desta por que busca "o mundo em discurso". O crítico francês Barthelémy Amengual cita Christian Metz :

Em sua realidade mais ampla, a linguagem se manifesta sempre que uma coisa é dita com a intenção de dizê-la; ora, o filme só pelo fato de que deve sempre escolher o que mostra e o que não mostra, transforma o mundo em discurso.

O mundo em discurso é uma espécie de chave para entrar nos filmes de Vertov. Para ele, o valor da imagem situa-se, então, entre estes dois ofícios: reconhecimento da montagem, e percepção do mundo não como linguagem, mas como um duplo de "modelar", que podemos rearticular, reentrar, ao contrário, por exemplo, da apreensão limitada que nos é revelada pelos filmes acima citados.

Não estabelecemos uma crítica da narrativa clássica, nem da vanguarda francesa, muito menos de Fritz Lang. Mas, uma constatação: Vertov distingue outros princípios da imagem. Causou furor e muitos dizem que brigava com Eisenstein.

Mas o que realmente incomoda, até para o amante da obra de Vertov, é a complementaridade quase obrigatória de seus textos. A obra teórica de Eisenstein não precisa estar em sintonia com seus filmes. Já de Vertov é quase obrigatória. Isto gera algum desentendimento: não sabemos se os textos são complemento ou suplemento do filme. Pelo menos não explicitamente. O Homem da Câmara e Três Canções para Lenin são filmes bem menos intrincados do que, por exemplo, Entusiasmo. Talvez devido a este fator bibliográfico, já que a literatura existente a respeito dos dois primeiros (planificação, cartas, manifestos) é muito maior do que relativa ao terceiro.

Vertov porque cinema é assunto do século. Vertov porque criou um mundo aparentemente limitado, mas que aponta para nossa percepção como britadeira de sentidos repetitivos, tradicionais, arraigados... Mas, antes de mais nada, Vertov porque buscou a autonomia do cinema, não como arte isolada em sua sintaxe, mas como portador autônomo de tudo que há no mundo.