Mostra Internacional de Cinema
de São Paulo-1998: Um Balanço

Entre 16 e 30 de outubro de 1998, São Paulo foi o centro das atenções do cinema no Brasil. Estava rolando a 22ª edição da Mostra de Cinema de São Paulo,o evento de cinema mais importante do país (pelo menos para os cinéfilos de carteirinha). A mostra é o mais abrangente painel de filmes exibidos no país. Este ano, mais de 160 filmes passaram por lá, representando 34 cinematografias. Destes filmes, de 40 a 50 tinham sido exibidos na Mostra Rio em setembro. No entanto, o diferencial de São Paulo é que a seleção prima pela estranheza dos títulos, sempre plena de novidades. A verdade é que em São Paulo você tem mais chances de ver um filme ruim, mas isso se dá pela ousadia da seleção. Você também tem mais chances de ver maravilhas desconhecidas, que nunca mais aparecerão. Este foi meu quarto ano de mostra, o primeiro em que estive lá por toda a duração do evento, e sei que em anos anteriores pude ver algumas coisas inesquecíveis e nunca mais vistas, como uma retrospectiva completa de Theo Angelopoulos em 96, Cinzas do Passado de Wong Kar Wai em 95 (antes de ele virar moda) ou ainda deliciosas pérolas da Romênia, Casaquistão, Equador, e tantas outras.

Este ano a Mostra esteve em 7 cinemas, mas foi impossível não sentir falta do CineSesc, possivelmente a melhor sala do Brasil, e templo do cinema para os cinéfilos, em especial na Mostra. O CineSesc está em reformas e nos resta torcer que ele volte ainda melhor em 99. A mostra de São Paulo é um sucesso de público inacreditável. A cinefilia paulista não tem fronteiras, pois nunca vi um filme com menos de 50 pessoas, isso com sessões ao meio dia de Domingo ou às 0hs de Quinta. A mostra vende permanentes, e este ano mais de 400 pessoas as compraram. Há uma verdadeira confraria de mostrófilos que se encontram a cada sessão, trocam idéias, impressões, avisos e sugestões. O clima é de pura loucura, com muita diversão.

Na mostra havia duas retrospectivas, de Kenji Mizoguchi e Dusan Makavejev. Dois mestres indiscutíveis nas suas especialidades, mas a verdade é que não fui ver qualquer dos filmes pois acho complicado misturar na nossa subjetividade obras-primas do passado com o panorama atual do cinema (ainda mais a 4 ou 5 filmes ao dia). Dentre os outros filmes, 21 já haviam sido vistos na Mostra Rio, inclusive algumas maravilhas como Festa de Família, Os Idiotas, Inquietude e Felicidade (que ganhou o prêmio do júri). No total, foram vistos 46 filmes pela primeira vez e o que segue é um balanço desta produção.

Os Temas

Pode-se notar a predominância de três temas (talvez muito interligados):

As críticas à instituição Família. Fácil de notar já pelos títulos dos filmes, como o próprio Festa de Família, e ainda Família, da Espanha, Tudo em Família, da Coréia, e Nossa Linda Família da França. Todos de uma forma ou de outra tentavam mostrar a inadequação neste fim de século às regras formadoras desta instituição, dos problemas que surgem a partir disto, das formas de subvertê-la. A chave da comédia é a escolhida, por exemplo, por Família, de Fernando Leon de Aranoa ou Nossa Linda Família, de François Ozon, mas ambos tem subtextos muito sérios, incomodando profundamente o espectador. O filme francês é especialmente incômodo por lidar com a crítica de forma às vezes surreal, levando o espectador a um conflito real com o que assiste. Festa de Família ataca por outra vertente, mais séria (embora risos nervosos percorram toda a platéia), na qual destacaria ainda o australiano Os Garotos , o colombiano A Vendedora de Rosas e também Felicidade. De uma forma ou de outra, o resultado é a conclusão de que algo de muito errado está vivo por trás das nossas famílias.

A globalização, o neo-liberalismo, e seus efeitos. A questão foi discutida em filmes, tanto de forma clara e politizada quanto simplesmente pelo enfoque de personagens marginalizados e mal tratados por esta realidade que exclui muitos ao incluir poucos. O mais chocante retrato veio com o francês Só Contra Todos, já exibido no Rio Cine, e que mistura uma forma cinematográfica fortemente maneirista a um discurso claro de denúncia. Violento, doentio, por vezes pretensioso, o filme retrata um homem sem emprego, sem futuro, sem passado, um excluído, que resolve tomar nas mão a rédea do processo. O Matador, do Casaquistão, usa de uma forma mais clássica e quieta, mas talvez acabe muito mais bem sucedido em mostrar que não há saída nem humanismos num sistema onde a falha impede o lucro, o sonho é improdutivo, a honestidade e a ética, questões bobas. O português Tráfico segue um caminho totalmente diferente, lembrando muito o Buñuel de O Discreto Charme da Burguesia ou O Fantasma da Liberdade, surrealmente gozando (muito seriamente) da sociedade atual. A Vendedora de Rosas e até mesmo A Grande Noitada também falavam do mundo de hoje criticando a famosa solução única que Luis Fernando Veríssimo tanto menciona, questionando sempre se esse é o único caminho possível, e a que preço.

Solidão. Sem achar caminhos na família e oprimido pelo sistema, vários protagonistas dos filmes só acharam consolo em si mesmo, ou nem aí. A solidão falou fundo nos filmes da mostra, em especial e com mais qualidades no americano Claire Dolan, no japonês Peixes de Agosto e no holandês Um Homem e seu Cachorro. Muitos outros filmes traziam a marca da solidão em personagens isolados, mas estes três eram especialmente contundentes em mostrar seus protagonistas numa luta, acima de tudo, para achar algum amor ou companhia no mundo. Não se pode dizer que ao final nenhum deles tivesse conseguido...

As Cinematografias

Também pela frequência, três cinematografias merecem destaque dentro da mostra. Uma, porque foi descoberta no Brasil pela Mostra para alçar fama (a iraniana), outra por não ser quase exibida fora da mostra, e ainda assim ser sempre um destaque (o Leste Europeu) e outra pela volta em destaque na mostra (a nossa própria) após alguns anos sumida.

Irã. No total foram exibidos dez filmes iranianos na mostra, sendo 5 na retrospectiva reservada a Dariush Mehrjui. No próprio público o que pôde ser notado foi um certo cansaço com este cinema. Sem dúvida realizador de belos filmes (em especial os de Kiarostami e Makhmalbaf), o Irã foi alçado de repente a grandes alturas, e começa a haver um movimento contrário ao excesso de filmes vistos deste país. Ou melhor, não ao excesso por si mas ao detrimento que ele guarda de outros cinemas nacionais talvez tão interessantes quanto este. Na Mostra o cinema iraniano compareceu com belos filmes, mas confirmando um pouco este cansaço, todos eram sempre comentados com referência a antecessores. Por exemplo, não houve que mencionasse O Silêncio e A Árvore da Vida sem falar de Gabbeh. Ou A Maçã e O Espelho sem menção a O Balão Branco. São todos filmes no mínimo interessantes, mas falta uma renovação de temas. O interessante é que uma solução podia estar no passado, pois os filmes de Mehrjui traziam idéias novas. A Vaca, de 1969, é um filme belíssimo que traz mais semelhanças com nosso Cinema Novo, por exemplo, do que com o cinema iraniano atual. Já A Escola em que Estudamos, de 81, é uma fábula de contestação política poderosa. Ou seja, o cinema iraniano, para continuar interessante deve se renovar.

Leste Europeu. Tradicionalmente a Mostra de São Paulo é rica em filmes desta região, pouco vista fora de lá. O Leste Europeu tem um feeling bem diferente no cinema, algo entre uma frieza formal e um realismo mágico difícil de captar, mas muito sedutor. Na minha análise, dois dos três melhores filmes da mostra vinham de lá. O Sapato, filme da Letônia, e Matador, do Casaquistão. Interessante como suas propostas de cinema são os opostos exatos. O Sapato, de Laila Pakalnina, questiona a capacidade do cinema de mostrar uma realidade, e em especial de contar uma história. O tempo todo ele esconde os que seriam os protagonistas no fundo, nas sombras, fora de quadro. Parece dizer: isso é uma bobagem, o poder da câmera ligada é outro. Não pode ser contido em seguir uma historinha. O resultado é mágico e envolvente como o bom Godard da década de 60 e 70: auto-reflexivo e deliciosamente divertido ao mesmo tempo. Já Matador quer o contrário, quer interferir e mostrar a realidade do neo-liberalismo. O filme de Darejan Omirbaev (diretor do belo Cardiograma, exibido em 95) é de um rigor impressionante, não desperdiçando um plano que não seja para explicar suas idéias, expor sua moral. Além destes filmes o Leste Europeu compareceu com o húngaro naif Tradição Cigana (pena pois os filmes húngaros são sempre alguns dos melhores); o russo Sobre Monstros e Homens, belo visualmente mas frio e equivocado tematicamente; o filme do Quirquistão O Filho Adotivo, interessante; e o também russo O Ladrão, já lançado no Rio. Havia ainda a co-produção de Romênia e França Trem da Vida, pouco exibida na Mostra Rio, mas grande sucesso em São Paulo levando o prêmio do público e da crítica. Faltaram os poloneses, iugoslavos e eslovacos, geralmente fortes.

Brasil. A mostra criou uma sessão Perspectivas do Cinema Brasileiro, semelhante a Premiere Brasil do Rio. Sempre boa para se medir a produção nacional de forma coletiva, ela exibiu os já lançados Ação Entre Amigos e Kenoma, mais os desde então lançados Amor e Cia., Tudo é Brasil, A Grande Noitada, O Toque do Oboé e O Amor está no Ar. Completavam a seleção O Viajante, Traição e Iremos a Beirute (exibidos na Mostra Rio) e A Hora Mágica e Paixão Perdida, os únicos inéditos até hoje no Rio. A Hora Mágica junta o pior e o melhor de Guilherme de Almeida Prado. Tem o seu domínio da linguagem cinematográfica, criando cenas deslumbrantes com sua cenografia deslumbrante e fotografia esplêndida. Mas tem também sua frieza, distanciamento e excesso de idéias que o roteiro não comporta. No geral, um filme bom. Já Paixão Perdida mostra (especialmente pois foi exibido em sessão dupla com o fantástico Noite Vazia) um cineasta em franca decadência. Walter Hugo Khouri cria algumas cenas misteriosas e um personagem infantil fascinante, mas o desperdiça em situações e cenas constrangedoras, péssimas atuações do elenco todo (Mylla Christie, belíssima, dá pena) e um filme que não decola. O balanço é positivo especialmente pela variedade de propostas dos filmes (ver cinema iraniano), se não pela regularidade de qualidade.

Enfim, a Mostra de São Paulo é uma orgia recomendada a todos que gostam de banhar seu imaginário no que há de mais novo no cinema mundial. Uma delícia.

Abaixo, os melhores filmes do evento:

  • Matador, de Darejan Omirbaev (Casaquistão)
  • O Sapato, de Laila Pakalnina (Letônia)
  • A Eternidade e um Dia, de Theo Angelopoulos (Grécia)
  • Abril, de Nanni Moretti (Itália)
  • O General, de John Boorman (Inglaterra)
  • A Vendedora de Rosas, de Victor Manuel Gaviria (Colômbia)
  • Sonhos Gelados, de Jan Troell (Suécia)
  • Lágrimas Negras, de Sonia Herman Dolz (Holanda)
  • Peixes de Agosto, de Yoichiro Takahashi (Japão)
  • Flores de Xangai, de Hou Hsiao-hsien (Japão)
  • Os Garotos, de Roman Woods (Austrália)
  • Empurra Empurra, de Park Chul-Soo (Coréia do Sul)
  • Família, de Fernando Leon de Aranoa (Espanha)

Além, é claro, dos já vistos no Rio: Os Idiotas, Festa de Família, Felicidade, Carne Trêmula, Wintersleepers, Pi, Sozinho contra Todos, Inquietude e A Árvore da Vida.