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Plano Geral
setembro de 1999

 

Festival Internacional
de Curtas de São Paulo —
Panorama Brasil

O Festival de Curtas de SP é uma verdadeira orgia cinematográfica, não se enganem. O número de filmes atualmente exibidos é impressionante, e mesmo quem só pudesse estar lá por 4 dias como eu, adquire uma quantidade invejável de informações. Até porque, além das sessões normais temos os filmes todos, mais os não-selecionados a disposição numa videoteca no MIS, de modo que não tem tempo morto... Pelo pouco tempo que poderia estar presente, vi só alguns filmes internacionais, selecionando títulos pela sinopse do catálogo, mas ainda assim havia algumas pérolas, especialmente o inglês Eight e o coreano Piquenique, mas também o mexicano Perriférico, o holandês De Zone, os finlandeses (que sempre arrasam nos curtas) Um Dia Um Homem comprou Uma Casa e Gêmeas, o francês Acid Animé, e algumas animações já exibidas no Anima Mundi como O Cíclope do Mar, Bunny e Surprise Cinema. Mas, independente da qualidade intrínseca de filmes, é fantástico que possamos ter uma panorâmica tão ampla da produção mundial neste formato que talvez seja o que produz o cinema mais interessante no mundo, ano após ano. Outra constatação é que um dos filmes mais desinteressantes, como via de regra acontece ano após ano, era o ganhador do Oscar Noite de Eleição, dinamarquês bobo e preconceituoso (pior, disfarçando-se de crítico quanto ao preconceito).

Mas, como sempre tento fazer (seja em curtas ou longas) me centrei mesmo na produção nacional, pois Paulo Emílio nos ensinou (e até hoje não entenderam por quê) que o pior filme nacional é mais importante que o melhor estrangeiro. E o Festival de Curtas permite um olhar quase completo (infelizmente, pois existe a chance única de fazê-lo ser completo) na produção nacional de um formato no qual o Brasil tem grande tradição. Pude ver 57 dos 66 filmes em exibição, além de outros 9 entre os não selecionados. A sensação é a mesma: o curta é um microcosmo do que podia ser o nosso cinema de longa metragem se o deixassem produzir em quantidade: uma grande variedade de temas, motivações, e uma vontade imensa de mostrar o país e suas diferentes regiões e possibilidades estéticas. Especialmente agora que a produção de longas passa por mais esta crise, a verdade é que é um privilégio poder ver o país espelhado nos curtas, como tem acontecido nos últimos anos sistematicamente.

Desta nova safra, dois filmes merecem destaque: Texas Hotel de Cláudio Assis, um filme pernambucano "porreta", "du caraio" mesmo, com ousadia estética se misturando a uma poética puramente brasileira misturando a grandeza criativa com a miséria nacional, os sotaques multiculturais de Recife, uma experiência inovadora e excepcional como não se vê no cinema nacional há algum tempo; e o mais rodado (estreou aqui no Rio na Curta Cinema em novembro passado) Do Dia em Que Macunaíma e Gilberto Freyre Visitaram o Terreiro da Tia Ciata Mudando o Rumo da Nossa História, de Vitor Ângelo e Sérgio Zeigler, que cresce a cada revisão pelo seu ritmo contemplativo, sua excepcional e discreta fotografia, seu olhar mítico sobre a cultura brasileira.

Se o número de filmes "excepcionais" foi pequeno, mas de acordo com a média de outros anos (ano passado, por exemplo, tínhamos A Hora Vagabunda, Náufrago e Kyrie), impressionou mais uma vez a vitalidade e a qualidade dos filmes, na média. Muitos filmes muito bons passaram em São Paulo. Tínhamos por exemplo a força do cinema gaúcho com Três Minutos (que sem a fala final seria um excepcional...) e Um Estrangeiro em Porto Alegre; as animações fortíssimas De Janela pro Cinema e Cidade Fantasma; o "cinema publicitário qualidade ISSO 9000" de boa qualidade em E No Meio Passa um Trem e Uma História de Futebol; uma vitalidade fora do comum de grande alegria de viver e fazer cinema nos exemplos nordestinos de Conceição (Pernambuco) e Rádio Gogó (Bahia); a força do cinema-ensaio em Algo em Comum; e a bela surpresa Rota de Colisão de Roberval Duarte (cujo uso do som é sublime, no mínimo).

Destaque maior merece a safra de documentários, sempre representativa, mas neste ano especialmente fortíssima. Liderados por Copacabana de Flávio Frederico, com seu enfoque social-pessoal sobre a passagem do Reveillon no Rio, misturando poesia estética com um verdadeiro olhar antropológico. Mas ainda com Uma Nação de Gente, lindo retrato do vaqueiro nordestino; Bubula um filme de estética "careta" mas que revela um material histórico de cinema absolutamente fenomenal; Pombagira e Palestina do Norte, retratos dignos de Brasis pouco conhecidos, seja no interior do Pará, seja no Rio de Janeiro, dando maior ressonância às palavras de Paulo Emílio.

Entre as decepções, alguns curtas de diretores de quem se esperava mais, como O Pedido de Adelina Pontual, um filme esteticamente belíssimo mas longo demais para uma idéia que não se sustenta; mesmo problema de Ano Novo de Marcos Fábio Katudjan. Houve ainda a produção capixaba Bem Vindos ao Paraíso que não justifica completamente sua opção de narrativa temporal quebrada, ou A Pessoa é para o que Nasce, uma experiência abortada, digamos assim.

Mas, dois gêneros tradicionais do curta nacional decepcionaram especialmente, a comédia e o experimental. Entre as primeiras, a maioria das piadas filmadas não tinham qualquer interesse cinematográfico ou desenvolvimento narrativo, como o incensado Deus é Pai, que é uma bobagem sem nada de novo; Quadrilha, Entrevista, Os Penúltimos serão os Segundos, e até mesmo O Oitavo Selo, que embora tenha uma estrutura mais interessante só fará rir de verdade quem nunca viu Monty Python. O Casseta e Planeta semanalmente produz esquetes melhores... Dentro deste grupo, melhor os filmes paulistas "certinhos", mas que possuem dramaturgia própria como A Idade do Coração e Vou te Encontrar Vestida de Cetim.

Os filmes experimentais pareceram surpreendentemente cansados e repetitivos, do Hi-Fi de Ivan Cardoso ao Spirit de Tripolli, passando por Encontro com Bardem. Apenas Solidão Vadia e Impressões para Clara possuiram momentos de interesse, embora nenhum deles tenha ido até o fim na proposta apresentada.

Vale ainda dizer que estou me eximindo de comentar os filmes universitários em detalhes, por estar na posição de organizador do Festival Brasileiro de Cinema Universitário, o que seria bastante anti-ético. Basta dizer entretanto que já houve safras melhores, ainda que destaque-se (sem problemas éticos por já terem sido exibidos no Festival) os premiados por aqui Banco de Sangue, Polêmica, Tá na Mão e Família do Barulho. Não parece no entanto que nenhum destes vai ficar para futuras retrospectivas, como aconteceu este ano com Terral, Ave, A Escada, Juvenília, Nunc et Semper, Gostosa, Noite Final Menos Cinco Minutos ou Geraldo Voador, incluídos entre os melhores da década.

Aliás, a mostra em homenagem aos dez anos do Festival, única a ser exibida também no Rio, teve muitos pontos altos, mas também outros questionáveis. O número de filmes brasileiros era excessivo (até por uma compreensível contenção de despesas), e com isso a qualidade de alguns deles era discutível para estar numa amostragem dos melhores da década. Já os internacionais tinham exemplos de filmes de diretores conhecidos, ou filmes que estabeleceram fama no circuito dos curtas. No entanto, quem acompanha sempre o Festival sabe que os melhores filmes mesmo não têm necessariamente este perfil, mas sim o de experimentações de linguagem ou narrativa que ficam escondidos quais pepitas a serem descobertas (especialmente os premiados em Tampere, anualmente destaques de São Paulo). Mesmo assim temos que louvar sempre a chance de rever filmes como o húngaro Vento, o polonês Tango, ou o mexicano No Espelho do Céu, ou ainda os brasileiros A Hora Vagabunda, Enigma de um Dia, Memória ou Wholes.

A lista final com os 10 favoritos do público no panorama Brasil e Internacional/Latinos, pareceu coerente como costuma ser. No caso brasileiro, a ausência de Macunaíma não chega a surpreender, pois não é um filme que agrada a todos. O resto da lista premia os documentários, e realmente escolhe alguns dos melhores filmes em exibição. Comemore-se a exclusão de "Deus é Pai", mostrando que o público não se enganou por esta piada (tendo escolhido o melhor entre as piadas apenas para representar este "grupo"), e lamente-se ainda a ausência de Rádio Gogó. A lista tem: Bubula, Conceição, Copacabana, De Janela pro Cinema, E No Meio Passa um Trem, O Oitavo Selo, Três Minutos, Texas Hotel, Uma História de Futebol e Uma Nação de Gente. O prêmio revelação, que deve ser comemorado inclusive por praticamente permitir de fato a realização de um filme, ao contrário de outras premiações-engodo onde o realizador saí com um montante ou serviços insuficientes para sequer começar a produção, premiou Rota de Colisão como melhor filme de estreante. Uma escolha bastante razoável, visto que entre os estreantes apenas Uma História de Futebol, Uma Nação de Gente e De Janela pro Cinema poderiam argumentar superiores ou no mínimo equivalentes ao premiado. Como só podia ser um o premiado, fica justo. Que esta iniciativa continue!! Já a lista estrangeira costuma ser mais "popularesca" e isso se confirmou, com a inclusão de curtas mais fracos como Era uma Vez, O Chinês e Falar, todos bons filmes menores. Ficou faltando o radicalismo de Piquenique, Eight ou O Cíclope do Mar, mas comemore-se as inclusões de Perriférico e Um Dia um Homem Comprou Uma Casa, filmaços indiscutíveis.

Embora os filmes sejam sempre o centro de tudo, é bom que se diga que em São Paulo eles são apenas o começo. O Festival de Curtas tem um clima especial de reunião de realizadores, organizadores de Festivais, jornalistas, críticos, profissionais em geral ligados ao cinema, que além de centralizados no MIS para assistir filmes, acabam partindo para homéricas baladas sem fim. A organização certamente incentiva o clima informal que rola entre os realizadores, e a verdade é que, se por um lado há uma certa estranheza na carnavalização geral em meio a tão grave crise no cinema nacional, por outro não se pode negar a importância da sublimação pela farra, e da importância destes pólos de encontro (sempre ligados aos filmes e sua exibição) para a perpetuação de idéias e contatos vitais para a cena cinematográfica.

Eduardo Valente

Filmes na TV

No mês do cinema no Rio de Janeiro, quem ficar em casa vendo televisão vai encontrar uma bela programação esperando. O canal Cinemax estréia três filmes de Sam Peckinpah inéditos em cabo: Major Dundee (Julgamento de Vingança, 1965), seu terceiro filme, passa no dia 12, às 23:00. Uma semana depois, no dia 19, é a vez de The Ballad Of Cable Hogue (A Morte Não Manda Recado, 1970), sua quinta realização, que será exibida no mesmo horário. No dia 26, passa The Getaway (Os Implacáveis, 1973), também às 23:00. Seu gosto pelo maneirismo e pelo primeiríssimo plano, tanto quanto a (tão badalada) estilização da violência, poderão ser verificados – ou então questionados – com esses três filmes pouco conhecidos.

Cineastas a (re)descobrir: Arturo Ripstein, realizador de Vermelho Sangue e do maravilhoso Evangelhgo das Maravilhas, terá seu Princípio e Fim exibido pelo canal Fox no dia 17, às 22:00. Terra, de Julio Medem, será exibido pelo Cinemax às 21:00 do dia 19. O enfant terrible americano Harmony Korine terá seu Gummo (Vidas Sem Destino) exibido pelo mesmo Cinemax no dia 10, às 04:45. Por fim, o telefilme de Joe Dante, Conquista da Galáxia, será exibido pelo Telecine 1 no dia 12, às 21:00. Mesmo que o filme seja anterior à bela fábula que é Pequenos Guerreiros (mas não anterior a Gremlins!), vale a visão.

Para os cultores de antigos filmes, o canal Futura exibirá – infelizmente em sua versão dublada – o filme Moonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, dia 25, 22:00), de Fritz Lang, de 1954, filme que já foi considerado obrigatório do conhecimento cinéfilo e hoje caiu no esquecimento. Outra pérola a ser redescoberta é o Robinson Crusoé de Luis Buñuel, que a TNT exibe no dia 29, às 06:45. O filme foi rodado no México com um tipo de colorização logo abandonado. Além das cores inéditas, Buñuel mostra a depuração formal/moral de sempre para mostrar o mito-espelho do self made man. O Cinemax exibe no dia 17, às 21:00, um dos filmes mais raros do realizador italiano Luchino Visconti, Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei, 1969). E last but not least, o grande Howard Hawks terá seu A Noiva Era Ele (I Was A Male War Bride) estreado no canal Telecine 5 no dia 23, às 22:00.

Ruy Gardnier

+ Hitchcock:
Temporalidade

Evoca-se a critério do cinema de Alfred Hitchcock que é o melhor cinema de entretenimento do mundo. Um possível corolário seria considerar os filmes de Steven Spielberg como os eventuais sucessores de Psicose, Janela Indiscreta ou Intriga Internacional. Ora, partindo-se de premissa falsa, acaba-se alcançando as piores conclusões. Que o cinema de Hitchcock faça um exímio trabalho de depuração para ser palatável ao público, é uma coisa, e um grande mérito; mas que se diga que esse é o grande valor de sua obra seria tão estúpido que nem se trata aqui de necessitar provar.

Tudo que admiramos num grande autor é a capacidade de recriar o mundo tal qual demiurgo, tornar o mundo visível sob outros olhos. E realmente é possível falar (mesmo sendo redutor) num universo propriamente hitchcockiano: o suspense como ontologia, o homem falido e a distância do universo feminino, por exemplo. E se admiramos o cinema de Alfred Hitchcock, é simplesmente porque gostamos de mergulhar nesse mundo estranho (e nada palatável!) que pode tão bem caracterizar a maturidade sexual como um projeto, o bom casamento como um alvo que só pode ser atingido a partir de uma prova, um prévio teste de força. O cinema de Hitchcock libera o desejo, torna-o mais forte.

Onde isso em Spielberg? O cinema de Steven Spielberg, depois de uma década promissora, provou ser o maldoso cinema do papai, um cinema da autoridade (técnica, dramática e narrativa), logo, do recalcamento do desejo. Lembre-se de um personagem feminino forte de Spielberg (tempo para pensar...): o último remonta a A Cor Púrpura, e não se pode dizer que a sexualidade desempenha um grande papel nesse filme. Bom ou ruim, o cinema de Steven Spielberg sempre foi assexuado; antes ele ainda podia usar a sua assexualidade para fazer um personagem sair da sua inércia familiar em Contatos Imediatos.

Ao contrário, o cinema de Wes Craven vem-se revelando como extremamente político, uma bela política do desejo: em Pânico, só depois da revelação sexual a personagem principal consegue descobrir o assassino. Pânico trata de poder, saber e sexualidade, como os melhores filmes de Hitchcock. Trata-se aqui, então, de reverter a funesta herança e fazer de Pânico o único filme realmente herdeiro da moral cinematográfica hitchcockiana.

Ruy Gardnier

++ Hitchcock: vulgaridade

Em recente artigo de malfadada revista da direita brasileira, o trabalho de Hitchcock é "revisto" por um senhor de nome Sérgio Augusto de Andrade (não confundir com Sérgio Augusto, crítico bundão da nada bundona BUNDAS), que acha que consegue desautorizar toda o trabalho de elucidação feito pela nouvelle vague (Godard, Chabrol, Truffaut, Rohmer) a respeito da obra do bretão centenário. A obra de Hitchcock, diz o senhor SAA, apresentaria um conjunto de vulgaridade inexpugnável, e por isso seus filmes deveriam ser relegados ao lugar que mereceram os simples filmes mercadológicos americanos da mesma época.

Além do simples argumento de autoridade que, apesar de muito criticável, aqui valeria (por que preferir o argumento de um senhor que de cinema nada sabe em detrimento de verdadeiros conhecedores e excelentes cineastas como Godard, Rohmer e Truffaut?), resta outro tipo de argumentação, dessa vez positiva: a vulgaridade nunca foi algo senão um atributo de moda, tão cambiante quanto a  echarpe da suposta sra. SAA quando sai com seu cachorrinho pelas ruas da Zona Sul (ou de Interlagos, sei lá). Vulgaridade em Hitchcock seria atribuir à idiotização dos personagens masculinos, à sexualização do menor gesto (a bengala de James Stewart coincidindo com o sutiã de sua amiga pela montagem em Vertigo) um certo tom de "mau gosto" que é tão vago quanto produto de um pressuposto saber estético assente em premissas de "sociabilidade" e de "vida em sociedade". Pois bem, os filmes de Hitchcock são uma verdadeira afronta a esse tipo de vida vagabunda e blasé. Hitchcock, ao inventar uma estética, inventa um mundo e reinventa os valores da estética, função que aliás realiza Howard Hawks também em Monkey Business e hoje parece estar sendo realizada pelos irmãos Farrelly (Quem Vai Ficar Com Mary?, Dumb and Dumber). Considerar esses filmes como sendo "de mau gosto" não é obra do pensamento, mas sim puro produto de recognição social; são filmes cuja estética afronta o gosto legitimado e que, por isso, são tão mal compreendidos pelos defensores apressados do "bom gosto" e da cultura em geral como hábito de reconhecer na arte um esquema prévio de valores e gostos. Esse cinema frustra esses defensores por construir sua própria estética, sua própria fruição e seu próprio esquema de valores. Todo grande cineasta realiza esse tipo de operação, e pobres dos maus críticos, que só poderão reconhecê-lo quando for tarde demais.

Ruy Gardnier

Quando o cinema
era caso de polícia

Perdoem-me o excesso. A auto-referência, mesmo justificada, sempre beira o ridículo. Pior é torná-la uma "lição de vida", algo moral e... elevado. Neste caso, não é. É, sim, uma banalidade, uma tolice, ou na melhor das hipóteses, um caso que se conta para amigos. Uma piada amarga para rir e pensar "que merda!" (tá a fim?).

Era a avant-premiére tijucana do filme Karatê Kid II, com Ralph Macchio. O cinema era o Art-Tijuca II, na rua Conde de Bonfim. Não havia uma fila quilométrica, como de costume, mas um abarrotado turbilhão juvenil. Estávamos ruidosos, aglomerados em frente aos portões cerrados da enormíssima sala. Restando meia hora para o início da sessão, um grupo de impacientes – eu inclusive – deu para escalar as grades do cinema. Sob os aplausos conscienciosos do aglomerado, nos pusemos a balançar a grade agressivamente, ao ponto de arrebentá-la. Isto feito, deflagrado o movimento: cerca de 250 jovens ensandecidos invadiram o finado recinto e, neste momento, a guarda foi acionada. Nada puderam fazer: já estávamos todos aboletados em nossas cadeiras. Ainda ruidosos, nossa expressões exprimiam uma ordem categórica: cinema!, eis o que bradávamos. A cara do gerente revelava algo entre assustado e falido porque poucos pagaram a sessão (poucos mesmo!). Ele ainda teve um admirável senso de humor, soltando uma risada como quem dissesse "porra!", ou qualquer outro palavrão de alívio.

Outra história aconteceu no Cine América, que hoje "é fábrica". Eu havia sido despedido de meu primeiro emprego. Trabalhava como balconista de uma locadora de vídeo, igual ao Tarantino. Com a rescisão, recebi uma grana bastante razoável e "meti o pau" comprando bolachas de vinil e – gorda criança – lanches no Bob’s. No mesmo dia fui ao América para a estréia de De volta para o futuro II, entrando às 15h e saindo somente à noite. De modo que, nas diversas sessões que assisti com a cabeça cheia de problemas (como explicar a demissão a mamãe?), não ouvi uma palavra de J. Fox. Cada sessão findada correspondia à entrada de outra turba ainda mais chacoalhante que as anteriores. O filme foi interrompido diversas vezes e só cessaram a balbúrdia com a chegada dos PM’s.

No último caso eu estava acompanhado de um maluco: meu avô. Ele encasquetou de ver Pink Floyd – The Wall em sua reestréia, se não me engano, em 1986. Era no Tijuca Palace II, também na Conde de Bonfim. Meu avô, fã de Prince, Stevie Wonder e Richard Brooks, dizia ter gostado dos desenho e odiado a música. Queria conferir e me levou. (Naquele tempo, menor não freqüentava "filme de idade", nem com ordem do Papa). Embora atrasados, não tivemos maiores problemas em entrar. Lá dentro, travei o primeiro contato com um odor, hoje bastante familiar: cannabis, presente em fumaça bruta e opaca. Meu avô, que não tinha muita censura e falava alto mesmo, gritou: "vamu pará cuessa macumba aê! Aqui não é lugá di macumba não!", e caiu na gargalhada. A galera fumava em larga escala e, na tela, Bob Geldof manifestava sua loucura de brinquedo. Muito pouco tempo depois de tatearmos um lugar e sentarmos, acenderam as luzes e... cruzes! Que flagra! PM’s invadiram a sala e o bicho pegou. Não me lembro bem, mas tenho a impressão que levaram uma galera embora. O filme foi cortado, o dinheiro devolvido e meu avô terminou bastante satisfeito. Tinha odiado "aquelas figurinhas frenéticas ao som de música marcial". Sábia figura.

Hoje a Tijuca não tem salas de cinema, a não ser nos shoppings. Tudo é templo. Mas o show tem que continuar: algumas semanas atrás, um cortejo de mais ou menos trinta carros da Polícia Militar varreu a Tijuca. Em velocidade lenta, com as sirenes ligadas e as lanternas piscando num paroxismo de luzes e sons, "apresentaram" à digníssima população tijucana a nova frota de carros de última geração. Vieram do Estácio e desfilaram por toda Conde de Bonfim. Foi, digamos, grandioso. Confesso que me senti uma barata acuada, tão indefeso e carente perante a magnitude do evento. Como se, enquanto morador, eu estivesse pedindo aquele "policiamento ostensivo", alardeado nos moldes de uma manifestação fascista. Lá estavam os policiais, mais uma vez, roubando o espetáculo. Mais uma vez, eu me escondia, atônito, sem saber por quê. E não me venham com perguntas difíceis. Bill Lee knows. Pergunte a seu amigo Benway, em Liberterra.

Bernardo Oliveira