Nunca Fui Beijada (Never Been Kissed),
de Raja Gosnell (EUA, 1999)

Mais uma vez o cinema americano volta aos tempos de 2º grau (para eles, a high school) e para seus rígidos moldes de existência: as gostosas da temporada, os nerds, os atletas populares, o músico apaixonante... Se representar a escola criando ficções escolares já nos deu peças interessantíssimas, dirigidas principalmente por John Hughes (os certeiros Curtindo a Vida Adoidado e Clube dos Cinco), o gênero havia caído em mãos menos competentes e gerou o marasmo da observação social-ficcional desse segmento-modalidade de existência. Raja Gosnell, que tem um passado como montador (trabalhou com Robert Altman e montou alguns dos melhores filmes do cinema médio americano atual, como Uma Linda Mulher e Esqueceram de Mim), parecia realmente indicado para fazer renascer esse tipo de filme. Nunca Fui Beijada é seu segundo longa, o primeiro sendo o fraco Home Alone 3: mais herança impossível, já que a série foi iniciada pelo próprio John Hughes.

Nunca Fui Beijada é a história de uma segunda chance, da redenção pela regressão. É a história de uma inusitada volta ao passado para reparar todas as neuroses adolescentes e se fortalecer para a vida futura. Josie Geller (interpretada à perfeição pela simpática Drew Barrymore) é chefe da revisão num importante tablóide de Chicago. Numa onda de boa sorte, ela consegue uma pauta grande: inscrever-se na high school para fazer uma pesquisa de campo sobre os adolescentes. A partir desse pedacinho de enredo, o filme abre uma outra porta, sem dúvida a via mais interessante do filme: Josie foi uma adolescente feia e impopular, cheia de pequenas mágoas que interferiram em seu comportamento adulto. O filme, tal qual uma boa sessão de psicanálise, será a volta aos tempos de escola para poder purgar um a um os seus traumas.

Se Nunca Fui Beijada é irregular, isso não quer dizer que não haja momentos de brilho. Gosnell dá golpes de mestre quando faz Josie reviver cada cena-trauma no melhor lugar possível. Assim, por meios ficcionais simples, ela é convidada para o baile pelo garoto mais rufus do colégio justamente em seu antigo quarto de adolescente (que em nada havia mudado desde sua mudança). Mas o brilho maior é reservado ao momento em que ela sairá de casa para o baile. Se a primeira Josie – feia, desajeitada e de mau gosto – foi humilhada com um falso convite que, à porta de sua casa, só lhe rendeu uma roupa suja pelo mesmo galã que a convidou, a segunda Josie – já mais crescidinha e popular – arruma um meio de fazer seu par buscá-la no mesmo lugar. A cena parece repetir-se: uma limousine chega em câmara lenta, com parte do teto aberta, e o jovem levantando a mão (supostamente para jogar nela alguma coisa). Mas a impressão é falsa, e o sinal de humilhação transforma-se numa flor, que é beijada.

Como em toda a fábula, há um período de aprendizagem. E essa aprendizagem serve para alguma coisa. No caso, para jogá-la no universo que ela quer – fazer reportagens ao invés de copidescar. E isso só será possível ao fim do filme, em que ela escreve o artigo prestando contas de sua vida passada e de seus sentimentos. Uma espécie de Carta ao Pai bizarra, psicanálise massificada que de uma hora para outra torna-se um surto de desejo em torno de uma regressão que dê certo. O filme começa e termina no estádio, onde Josie espera o seu amado professor de literatura para que possa enfim receber seu primeiro beijo. Todos os espectadores do estádio, via jornal, sabem do ocorrido e torcem por ela. Está aí a metáfora mais impressionante do desejo de cinema desse filme: fazer com que o sonho de um se transforme no sonho de vários, fazer pela regressão de Josie um relato em que toda fenda, toda falta seja abolida. Filme-terapia bonito, honesto e agradável, onde o passado só deve assumir uma determinação positiva. Mais um anti-Felicidade, então. Que bom.

Ruy Gardnier