Mistérios e Paixões (Naked Lunch),
de David Cronenberg (EUA, 1993)

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Peter Weller com o mugwump em Naked Lunch

Retorno a Annexia

Os heróis Cronenberguianos não são vítimas, em absoluto. São, isto sim, criaturas à caminho de uma amadurecida (porque estratégica) resolução política. Sim. Política. Porque possuem aguda (e a princípio conflituosa) consciência daquilo que as faz corpos estranhos, marginais, excepcionais, ao mesmo tempo que reconhecem a inevitabilidade do diálogo que terão que travar com A Doxa e suas instâncias de controle. Bill Lee, escritor/dedetizador/junky terá de se haver com a "marca interna" (outro sinônimo para o superego freudiano cunhada por William Burroughs - nosso querido e finado Virgílio pós-moderno - matriz do personagem). Todo o plot deste Naked Lunch dará conta de narrar essa via crucis: da constatação angustiada/fascinada de dependência em piretro (substância usada no veneno para matar baratas) ao assassinato de sua esposa Joan, passando pela conseqüente fuga (tanto lisérgica quanto literalmente geográfica) para o Marrocos/Interzona e culminando no seu retorno à América, não mais percebida como tal ("land of the free, home of the brave"), mas como Annexia (sociedade de controle).

Guilherme Tell

Como em outros plots Cronemberguianos, uma mulher funciona como pivô daquilo que será o rito de passagem do herói. Aliás, uma mulher e um ancião (Edward, seu colega de trabalho na firma de dedetização) que lhe indica o Dr. Benway, célebre por seu "inusitado" tratamento de desintoxicação. Bill já esboçava sua vocação para o irracionalismo, embora a podasse com suficiente empenho. Por meio de engenhosas foraclusões (que procuravam minorar, frente sua consciência angustiada, a latência de sua homossexualidade) ele adiava o fatídico encontro com suas pulsões.

"É preciso exterminar todo pensamento racional", ele dizia, enquanto racionalmente procurava exterminar

seus desejos reptilianos. Tudo ia se acomodando bem, até que por fim, durante uma viajem lisérgica regada a piretro, perfura o crânio de sua esposa com um tiro. À partir daí já não será mais possível sublimar nada. É importante notar que, pontuando cada etapa nesse processo de maturação, as alucinações de Bill imiscuem-se refinadamente com o fluxo narrativo, amplificando o sentido de suas ações ordinárias. E isso não se dá gratuitamente, mas de forma cuidadosa e pertinentemente regrada. O elemento lisérgico, ao contrário do carnaval multicolorido que se poderia esperar, funciona na verdade como emblema de seus processos interiores com um tal rigor metafórico, com tal austeridade formal, que não dá margem à qualquer vazamento de sentido. São ícones exatos, cifras do drama que se passa em seu inconsciente. O sentido de suas ações se amplia, mas não se perde ou muito menos se dispersa.

Ocorre então o seu primeiro encontro com Mugwump (que nada mais é senão ele mesmo, a visão asquerosa que tem de si e de sua pulsionalidade, seu ID), que o aconselha a comprar uma máquina de escrever (Clark-Nova) e à fugir para Interzona. Através de suas sucessivas mutações: de máquina-real-literal (Superego) à máquina-inseto-cu-falante (Superego-ID) à inseto-lagarto-total (Mugwump: ID), sinalizando o caminho que ele percorrerá até sua (ir)resolução final, ela (Clark Nova) servirá como índice das oscilações que sua consciência irá sofrer dali em diante.

Interzona

Tudo é ambíguo nesse território exótico. Nada mais apropriado, porque não há em Cronenberg dualismo ingênuo. Nem em suas criaturas. Bill não seria portanto exceção, tanto que sua saída desse Inferno (constituído pelo remorso e pelo recalcamento) se dará de forma "anfíbia" (se livrará do piretro "viciando-se" em uma outra droga, prescrita por Dr. Benway à partir da carne preta e moída de lacraia-aquática-brasileira). Todos os elementos constituintes da narrativa tornam-se à partir de então ambivalentes. E três episódios dentro deste segmento servirão de fundo, enquanto a figura (Bill Lee) sofrerá transformações. No primeiro, ciceroneado por Hans (excêntrico alemão e fornecedor da tal carne preta de lacraia para o Dr. Benway) terá contato com o submundo de Interzona, onde testemunhará a fabricação do pó que precisa ser adicionado ao piretro para torná-lo um pharmakón "perfeito" (perfeito porque dúbio, indecidivelmente). Conhecerá também Kiki e seus colegas (prostitutos que trabalham para Hans), com os quais terá relações sexuais (o que agravará ainda mais sua tensão interior, forçando-o a uma aproximação perturbadora com conteúdos antes mais eficientemente recalcados). No segundo, terá a oportunidade de medir forças com o escritor Tom Frost e realizar um cortejo atormentado com a esposa dele (Joan, também escritora e "idêntica" à sua finada mulher). Ocorre um conflito emblemático envolvendo a troca de suas máquinas de escrever (primeiro passa um tempo com a Martinelli de Tom, deixando sua Clark-Nova com ele; destrói a Martinelli durante um delírio e ainda, mais tarde, destrói a outra máquina de Tom - Mujahaddim - durante cópula com Joan). Será justamente no terceiro, quando aceita a "companhia" de Kiki, que Bill conseguirá de forma salutar aproximar-se dos conteúdos que atormentadamente negava. Reconstrói a Martinelli para reaver sua Clark-Nova e nisso reencontra, apaziguado, seu ID (Mugwump reaparece, dando velocidade aos eventos que o farão também reencontrar Dr. Benway). Todos (o casal Frost e sua misteriosa empregada Fadela, Hans, Kiki e o janota Yves Cloquet) estavam, sem que Bill pudesse notar a princípio, ligados ao Dr. Benway. Também será decisivo nesse processo de ajuste final consigo mesmo o reencontro com os amigos escritores Hank e Martin (prováveis duplos literários de Kerouac e Ginsberg): eles são os principais responsáveis pelo encaminhamento vocacional de Bill, fazendo-o perceber que o que ele considerava apenas "relatórios" (por força da viajem lisérgica) é na verdade, obra literária.

Back to Annexia

Toda a delirante estrutura policialesca que faz Bill sentir-se um agente de Interzona à serviço do Dr. Benway, apenas corrobora a noção de que tanto em Cronenberg quanto em Burroughs há um sentido subjacente de missão impregnando suas criaturas. Sentido esse que se traduz claramente na maneira com que elas pesam sua situação marginal no mundo, o seu estar-aí interagindo com a vontade coletiva (reificada em suas instituições). O Bill Lee que retorna à América (Annexia) não é de forma alguma um indivíduo derrotado, humilhado e forçado a reconhecer, diante de uma Doxa ensimesmada e autoconfiante, a inutilidade do drama pessoal que o mantinha excluído.

Também não é um indivíduo ingênuo a ponto de sentir-se plenamente afirmado, por ter finalmente reconhecido e liberado as pulsões que antes oprimia. Muito ao contrário. Há uma consciência aguda, conseqüente, do conluio imanente entre lei e desejo e das aporias desse conluio. Portanto não há mito barato nem de direita nem de esquerda que possa dar conta da complexa situação existencial que o faz perceber-se distinto demais para ser apenas mais um e, ao mesmo tempo, conivente demais para ser livre.

Marlos Salustiano