M. Butterfly (M. Butterfly),
de David Cronenberg (EUA, 1993)

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Qualquer um que aprecie, moderadamente que seja, os filmes de David Cronenberg, ao assistir a M Butterfly, fará, de cara, mais ou menos a mesma avaliação: Cronenberg se vendeu definitivamente ao cinema comercial, abandonou seus temas mais caros, se rendeu a uma maneira esquemática de narrar, fez concessões ao padrão médio de gosto do público... Pois essa é a única justificativa que pode passar pela cabeça de um fã seu, para explicar aquilo que parece ser um grande deslize na carreira do autor Cronenberg.

Tudo até que é bem interessante, e até simpático... Toda aquela discussão sobre representação, máscara, teatro, verdade, mentira, o jogo da representação dentro da representação, do envolvimento do personagem num teatro cujas rédeas ele acredita ter, etc. Mas um espectador mais cético pode achar ridículo demais ver Jeremy Irons apaixonado por um transformista chinês, que não engana ninguém. É impossível reconhecer aí qualquer uma das características tão presentes nos filmes de Cronenberg: nada dos temas e dos personagens bizarros de seus filmes anteriores, nenhum tipo de monstruosidade ou paranormalidade, nenhum sinal de cadáveres grotescos ou de mutilações, muito menos da alucinação fantástica dos vícios habituais. Tudo parece se resumir em uma única palavra, que nunca anteriormente, pelo menos, poderia ter sido usada com qualquer propriedade para se referir a Cronenberg: convencional.

Mas Cronenberg, com uma cena (quando o filme já está quase no fim), consegue recolocar tudo. O filme ganha não só um novo sentido, mas fica claro que era imprescindível que tudo tivesse transcorrido daquela maneira. Há um grande choque dramático entre tudo o que se passou até então e o que se dará desse momento em diante.

A partir do julgamento do personagem de Jeremy Irons passamos a ver talvez algumas das cenas mais constrangedoras, angustiantes, senão repulsivas (termo tão caro aos seus críticos e admiradores), de toda a "obra" de Cronenberg. Toda a tematização da mentira, do falso, que poderia parecer primária no início, é recolocada a níveis sufocantes: a representação aparece como uma necessidade e um desejo vitais, dos quais não podemos prescindir, e sobre a qual a verdade só pode ter efeitos nefastos e altamente destrutivos. A verdade só vem produzir uma outra representação, ainda mais profunda, mas não menos falsa: a do homem, uma piada para um audiência de presídio, que se transforma no mesmo personagem do qual antes ele acreditava ser o senhor. Uma inversão de papéis que exprime ainda mais fortemente a perversidade, o sadismo, anormalidade da verdade. Que outro tema poderia ser mais "cronenberguiano"? Mas também, em que outro momento Cronenberg foge mais às características que fãs e crítica acreditaram por bem lhe atribuir? Quando essa tragédia terrível termina não é difícil imaginar, então, Cronenberg rindo ironicamente, ao fundo, e dizendo: "todos os enganos são possíveis, e podem até encontrar a sua dignidade, mas não me tomem por aquilo que eu não sou".

Luiz Rezende Filho