Os Dois Filmes de 98

por Eduardo Valente

O que pode haver de comum entre um mega-lançamento hollywoodiano que vai concorrer a todos os Oscars existentes, e um filme de baixo orçamento realizado na ex-república soviética do Casaquistão, que pouco pôde ser visto em 1998 ou qualquer outro ano? Simples, os dois são os filmes do ano de 1998. Mas, o que é ser o filme do ano? Significa que foram os dois melhores filmes deste ano que acaba? Não exatamente. Significa sim que são belos filmes, mas antes de serem os melhores, são os que mais retrataram o mundo e seus fenômenos contemporâneos, e o estado do cinema mundial.

Todo filme fala do momento e local em que é realizado, diz uma velha teoria de cinema. Não importa se este filme é uma ficção histórica passada no século XI, se é um documentário sobre a 2ª Guerra ou se é uma ficção científica sobre a Los Angeles de 2019. Necessariamente estes filmes falam mais sobre a forma de pensar e ver o passado ou o futuro no específico momento em que ele é realizado. Os filmes de ficção científica são especialmente interessantes neste aspecto porque mostram como as expectativas em relação ao futuro mudam a cada década, e até a cada ano. Assim, para o filme ser contemporâneo, não necessariamente ele precisa falar do presente. Por acaso, estes dois filmes escolhidos para representar 98 são filmes que se passam na atualidade, ainda que um deles num registro realista e o outro bastante fantasioso.

Mas, chega de introdução e vamos ao que interessa: quais são estes filmes. Do Casaquistão veio o drama realista "Matador", de Darezhan Omirbaev. De Hollywood o simultaneamente elogiadíssimo e criticadíssimo "O Show de Truman" de Peter Weir. Ambos, cada um do seu jeito como veremos a seguir, são estudos importantes sobre o estado do cinema e do mundo em 1998.

Matador

Este filme precioso só foi oferecido no Brasil ao privilegiado espectador que freqüenta a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (como aliás muitos filmes bons ano após ano). Mesmo lá foi exibido para platéias não muito grandes, e também pouco entusiasmadas. Este fenômeno explica-se facilmente: "Matador" é um filme que esconde suas intenções por trás de uma forma tradicional, e poucos foram os que perceberam o grau de profundidade das propostas do seu diretor. Este talvez seja o principal ponto de contato entre os dois filmes: ambos esconderam suas intenções de seus públicos alvo muito bem. "Matador" é o terceiro longa de Omirbaev, todos realizados na década de 90, um grande acontecimento até para os padrões brasileiros, que dirá do Casaquistão. Seu segundo filme, "Cardiograma", foi exibido na Mostra em 1995 e era também uma pérola de delicadeza retratando um garotinho internado num hospital infantil para se curar de uma doença, e sua vivência com os colegas.

"Matador" tem pouco de delicado. Na verdade é um dos filmes mais crus e dolorosos já vistos. Conta a história de Marat, motorista particular de um cientista numa pequena cidade do Casaquistão. Um dia, voltando da maternidade onde sua mulher acaba de dar a luz, se distrai por um segundo do trânsito para olhar a criança, e bate com o carro. Este erro se revelará fatal na trajetória de Marat, que daí por diante enfrentará todos os tipos de provações tentando pagar pelo estrago realizado.

Em resumo, "Matador" se disfarça de um filme simples sobre os problemas de um homem, narrado de forma extremamente realista e monocórdia, para na realidade discutir o estado do ser humano na sociedade capitalista globalizada (no caso do Casaquistão, neo-capitalista). A principal idéia do filme é de que nesta sociedade não há espaço para compaixão, sorte, ajuda divina, amor. O resultado inevitável será sempre a destruição do humano pelo sistema. O melhor do filme é justamente fazer estas colocações sem forçar uma barra alegórica ou fazendo da sua narrativa uma mera exposição política. Ele usa da história de uma pessoa (como faz de forma menos brilhante Central do Brasil) para falar de todos nós.

A grande qualidade formal do filme é seu extremo rigor. Não há um plano, uma fala, um som que não esteja no filme para reforçar a tese do diretor. No início, Marat espera pelo seu empregador que foi dar uma entrevista no rádio. O cientista (cuja entrevista não vemos) demora muito pois não consegue achar a saída, numa cena quase godardiana. A seguir nós vamos ouvir o discurso humanista do cientista no rádio, enquanto Marat passeia pelas ruas da cidade. Na sua fala fica claro que ele também não acha a saída para a sociedade atual. Marat bate com o carro ao cometer uma "humanidade", olhar para seu filho no banco de trás. Esse erro não pode ser perdoado, pois toda distração é contraproducente com o trabalho, mesmo a família.

Daí por diante Marat mergulha em dívidas tentando pagar o estrago, e nós somos apresentados aos personagens sem saída que o cercam: sua irmã, que junto com o marido foi roubada por um falso sócio; o cientista, um humanista mas que, por isso mesmo, acaba se suicidando; finalmente o mafioso agiota que empresta dinheiro. Uma vez pago o conserto, os juros do agiota fazem de Marat um devedor maior ainda. Ele pega mais dinheiro e vai comprar um carro na Alemanha, esperando trazê-lo de volta, e pagar o agiota com o lucro da venda. Num restaurante de beira de estrada, o carro é roubado.

Marat procura o agiota para pedir mais tempo, mas não há compreensão. Ao fundo, os novos valores abundam na casa deste personagem que parece ser o único adaptado ao capitalismo: seu filho ganhou um computador, sua mulher tem aulas de inglês, um novo quarto está sendo construído. Mas, para Marat não há saída proposta: ou ele paga ou deve fazer um favor ao agiota assassinando um jornalista que está denunciando os esquemas. Como decidir-se pela ética quando seu filho está doente e você não tem dinheiro para ir ao médico ou para pagar o aluguel? Não há empregos também. Para Marat o suicídio passa a ser um sonho inatingível, literalmente, pois o diretor mostra seqüências oníricas onde este ato surge como única esperança. Para o agiota, quando Marat o procura, tudo se explica simplesmente: na calculadora. A lógica é matemática, só o sofrimento não é (alguém se lembra de alguma equipe econômica anunciando cortes de empregos e orçamento da saúde trazendo a matemática simples como explicação?).

Marat desiste da ética. Mata o jornalista enquanto este passeia com seu filho no parque. Mas, claro, o filme é inteligente e humanista demais para pregar que com o fim da ética pessoal acha-se uma saída. Na verdade não há saída e manter sua ética ou não é um detalhe. Marat é morto pelos capangas do agiota que querem abafar todo o caso. A cena final é belíssima, quando Marat é assassinado ao levar o lixo fora do conjunto habitacional. Enquanto ele sai começa a hora do racionamento de luz, e enquanto os capangas o levam para um canto, velas acendem em todo o prédio. Por Marat, e por nós.

Além desta história arrasadora, o filme (forma e conteúdo devem sempre andar para o mesmo lado) disfarça uma série de colocações políticas de forma sutil. Há um primado discreto dos outdoors, cuidadosamente em cena, poluindo a vida da cidade. Como que olhando de longe esse drama, está a Coca Cola, o Lucky Strike, a Miller. Não há maniqueísmo nisso, apenas a onipresente propaganda comercial que gera e pede lucros, que oprime sutilmente a paisagem do declínio de um homem. Da mesma forma, Omirbaev se permite três momentos de discurso sócio-político explícito, mas o faz de forma inesperada, através dos mais díspares personagens. O cientista no rádio, o policial que descobre o corpo do suicida e lê parte de seus textos, e por último o cozinheiro da beira de estrada lendo um livro de esquerda enquanto Marat é tratado dos seus ferimentos do assalto pela garçonete. Omirbaev parece dizer que enquanto estes discursos e idéias não chegarem ao povo, não há saída possível.

Omirbaev também estabelece posição contra um determinado cinema, de forma muito clara. Ao mesmo tempo que prega o naturalismo das situações, ele se coloca sutilmente contra a violência quando linguagem. Marat é espancado duas vezes no filme (pelos capangas do agiota em casa, pelos assaltantes), e morto no final. Nenhuma das cenas é mostrada. Mostra-se sim a conseqüência destas violências. A câmara faz questão de se ausentar dos locais. Ao contrário do cinema atual que mostra com requintes de sadismo cada gota de sangue, mas nunca o que acontece por conta destas explosões insanas de violência.

"Matador" é um filme sobre hoje, e infelizmente provavelmente sobre amanhã. A parte mais assustadora do seu caráter global não é a atuação destas forças sobre um ser humano, mas o fato de que sua história podia se passar em qualquer lugar. Ao contrário do discurso norte-americano, Omirbaev deixa claro que não há espaço para iniciativa individual. O declínio de Marat é o declínio de todos nós. Marat somos nós, mas também somos nós aqueles que o matam. "Matador", mundo, 1998. Quem quiser ouvir, verá.

Truman Show

Afinal, o que é o Truman Show? Um genial retrato sobre a sociedade consumista moderna ou uma picaretagem hollywoodiana onde uma clássica estória de um herói inferiorizado contra as forças do destino se disfarça de profunda reflexão? Como na maioria das vezes quando se tenta radicalizar de tal forma uma questão, nem um nem outro. Truman Show é sim um filme inteligentíssimo e premeditado, que segue sim várias das regras do jogo hollywoodiano com maior ou menor sucesso. Acima de tudo, é um filme que, ao refletir sobre a sociedade atual, acaba refletindo muito mais ainda sobre as possibilidades do cinema como meio popular de expressão de idéias.

A grande prova de que havia algo de especial neste filme, para mim, se deu na saída da sessão da primeira vez que fui vê-lo. Sala de shopping à noite. Sessão cheia. As pessoas pareciam não entender o que acabavam de ver. Algumas genuinamente gostaram. Outras se sentiram traídas. Outras ainda afirmavam ter gostado, mas era um filme muito estranho, diziam. Fiquei contentíssimo com estas respostas pois percebi (e vejam que nem tinha gostado tanto assim) que Peter Weir havia conseguido algo pouco visto no cinema atual: incomodado a platéia que ia em busca de um grande sucesso cômico. E isso é uma coisa linda. Resolvi que precisava rever o filme, desta vez sem público (à tarde, dia de semana, semanas depois da estréia) para entender o que incomodava tanto aquela platéia. Me despi das minhas análises cinematograficamente enriquecidas de um freqüentador do Estação, joguei fora as horas de Godard, Glauber, Bresson e Rossellini. Procurei sentar e ver aquele filme com os olhos daquele que tem hoje de 15 a 30 anos e que só viu na vida filmes de Hollywood. Adivinhe quem é este? Eu diria que 75% do público que vai aos cinemas. E me incomodei também. E vi que Peter Weir fez sim um filme rigoroso, quase experimental. Não para mim, e para você que está lendo este texto. Mas para quem foi ao cinema vê-lo em massa. E esta para mim é a qualidade indiscutível deste filme: para o público hollywoodiano de hoje (que é muito, mas muito mais emburrecido que o de 30, 20 ou até 10 anos atrás), para as massas, o filme é um incômodo. Um incômodo que eles até tentam apreciar, mas que vai de alguma forma mudar a sua percepção. Veja, não é mais possível se achar hoje que o público vai se transformar de repente como se sonhou no Cinema Novo. Jogue um Deus e o Diabo Na Terra do Sol nas telas dos shoppings e o que vai acontecer é que estes nunca mais voltam para ver um filme brasileiro. Jogue um Hal Hartley e o público muda-se para sempre para o Cinemark.

Peter Weir mostrou para mim um caminho. Um caminho triste e duro sim, mas um caminho realista. Para fazer deste público sensível, temos que jogar no campo dele. Temos que oferecer um herói, temos que oferecer um ator conhecido, temos que oferecer uma saga, um ritmo. Pois nosso inimigo é uma cultura disseminada pela TV, a imagem rápida, o descartável , a falta de atenção. Não devemos então ser experimentais, não há espaço para Godard e Bressane? Há sim, com seu público de 10 a 15 mil. Mas porque não atacar a pisque do público de dois milhões de espectadores também. E mais, o público muito maior ainda que verá o "Truman Show" quando exibido na TV? Porque desistirmos de dialogar com 85% da população em nome de um purismo para meia dúzia? Não dá mais para idealizar e pedir que o público seja mais inteligente e político esperando que isso aconteça sozinho. Um Truman Show também não vai fazê-lo, mas vários, todos os anos, talvez. E isso só acontece se o sucesso comercial andar junto com a exposição de idéias.

Não se enganem, Jim Carrey não é bobo. Assistam "O Pentelho" e vejam um filme dos mais deprimentes e darks do cinema moderno. Tanto que esse nem conseguiu ser sucesso de público. Era, sim, radical demais. Nos anos 60 e 70 talvez não. Hoje é. Carrey tentou de novo e conseguiu, com Truman Show, onde há o herói (em "O Pentelho" não havia), há a saga e a emoção barata, mas há também a coragem de ousar. O filme é brilhante neste sentido, e representativo mais do que todos de 98 porque mostra o que é o cinema alternativo no panorama mundial hoje: algo que custa e lucra milhões de dólares. Mas, algo que traz uma semente da estranheza para dentro da casa da comodidade. Truman Show é o cinema inteligente o suficiente para usar do mesmo repertório da estupidez reinante: você invadirá cada segundo da minha percepção com o vazio? Pois eu invadirei o teu domínio e plantarei uma semente de pensamento na sua estupidez.

E como é que o filme causa esta estranheza? De várias formas. Na sua primeira parte igualando o espectador a Truman. Fazendo o espectador estranhar a sua realidade como Truman faz. Usando de metáforas para um público que não as conhece. Mostra um personagem num mundo que parece tentar domá-lo, onde o rádio do carro o influencia diretamente a fazer coisas e a perceber o mundo de uma forma. Onde a propaganda serve só para forçar comportamentos (só que no caso o estranho para a platéia é que é ao contrário: ao invés do outdoor te fazer querer conhecer o Caribe, por exemplo, ele da mesma forma subliminar quer convencê-lo a não viajar). O público estranha aquilo tudo, como Truman estranha. A vida em Seahaven não parece só uma paródia das séries de TV, mas uma paródia da nossa vida. E o público percebe e pensa sobre isso. Ao mesmo tempo que estabelece simpatia com o "herói", o que garante sua atenção na próxima hora e quarenta. Weir filma de ângulos estranhos, impondo uma estética anti-naturalista a um público que não sabe o que é isso. Mas o faz com a desculpa de que é um programa de TV, daí não chocando este público. Torna normal o estranho.

De repente joga cenas de um público que olha direto para a câmara, como quem assiste TV. A platéia do cinema (e isso eu não suponho, eu vi acontecer) se assusta. Porque estão eles sendo olhados pelos atores, e não o contrário? O que isso quer dizer? Então a estranheza se explica através da criação de uma maior. Tudo parecia estranho e dirigido para Truman porque era um programa de TV. Há uma mudança importante de simpatia do público neste momento. Agora nós torcemos para Truman, mas nossa identificação já não é com ele e sim com aqueles que representam o público espectador do programa. É o público na tela, olhando o público na sala, refletindo-o. Estas são as melhores cenas do filme.

Voltamos à trama, que evolui até o encontro do pai. Um momento de construída emoção, certo? Sim, mas Weir corta esta emoção do público assumindo esta construção. Há alguém dirigindo tudo: a trilha sonora chorosa, os enquadramentos, a emoção dos atores. É o filme hollywoodiano assumindo na frente do seu público o seu artificialismo, a sua construção. Se isso não é coragem na Hollywood dos anos 90, não sei o que é. Vejam bem, Weir interrompe a trama que ele mesmo criou e passa para um momento absolutamente (auto) reflexivo: a longa entrevista de Christof, o diretor do programa de TV, que revela o mecanismo do filme num todo. Ele fala da série mas o espectador é forçado a pensar em todas as séries, todos os filmes. Então é tudo construção? Weir estabelece a cada momento mais, uma relação quase brechtiana de não-emoção com uma platéia que quer emoção acima de tudo. De dissecação do processo do espectador, do processo do personagem, do processo do realizador. Christof defende seus métodos: "Aceitamos o mundo que nos apresentam"; "Truman prefere sua prisão". Ele está metaforizando o nosso mundo. Mas será que o público vai longe assim na compreensão do filme? Weir responde com uma cena dos policiais que assistem à entrevista: eles não tem idéia do que significa aquilo. Eles, como o público no cinema, quer a volta de Truman. Então, vamos lá, vamos a saga do herói que quer fugir daquilo tudo. O filme volta ao seu registro hollywoodiano, a platéia vibra. Truman foge.

Truman toca o céu para descobrir sua falsidade, Truman foge pelo céu. Truman conversa com seu criador. "Não há verdade lá fora" diz Christof. E não há mesmo pois um personagem de TV só existe perante as câmaras. Por isso mesmo Weir não mostra Truman após a fuga, pois ele já não interessa mais ao espectador, ele saiu da TV. Não há encontro amoroso (acreditem, com uma direção menos conscienciosa haveria , não há adaptação ao mundo real, pois este não existe. Só existe Seahaven, e o público. Acabou a aventura, acabaram as duas horas de descerebrado entretenimento para as quais o público saiu de casa certo? Então porque aqueles dois policiais ainda estão na tela? Eles olham para nós, eles somos nós. "O que mais está passando?" pergunta um deles, trocando de canal. O público estranha, o que isso tem a ver com Truman, o "herói"? Nada, tem a ver conosco, pois o filme não é sobre Truman, mas sobre o público. O público que troca de canal pois cansou de Truman, Truman que chegou ao seu The End.

Me digam que o filme tem simbolismos baratos, eu concordarei. Me digam que o filme é piegas, eu assinarei embaixo. Me digam que o filme não vai fundo no que analisa, eu digo que é verdade. Mas não me digam que o filme não reflete o mundo hoje, o cinema hoje, acima de tudo o público hoje. E o faz de forma completamente consciente e proposital, diria que até afrontosa. Critiquem-no, mas pensem no público ao qual ele se destina, ao serviço que ele pode nos prestar. Eu, daqui, bato palmas para Peter Weir, palmas para Jim Carrey. Pois eles gastaram 50 milhões de dólares de Hollywood e ganharam 150 milhões de dólares do público médio americano enquanto criticavam os dois, mexiam com os dois, incomodavam os dois. Mesmo que eles não percebam agora, assim como não percebem a dessensibilização pregada em outros filmes. Subliminar é a chave.