Festen (Festa de Família),
de Thomas Vinterberg

(Dinamarca, 1998)

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Festen (Festa de Família) é o Dogma nº1, o que significa dizer que é o primeiro filme feito segundo os mandamentos do Dogma 95, manifesto redigido por Thomas Vinterberg, diretor do filme, e por Lars Von Trier, diretor reconhecido internacionalmente, e que dirigiu o Dogma nº2, Os Idiotas. Os dez mandamentos do Dogma 95 (a música deve ser executada no momento da filmagem, não pode haver iluminação adicional à da própria cena, o nome do diretor não deve constar dos créditos do filme, etc.) e o voto de castidade que dele segue não devem ser considerados somente como uma religião ou como um mero argumento publicitário, nem como uma mistura dos dois. Implicam, ao contrário, um outro modo de fazer uso do cinema, um uso que transforme as relações que a realidade tem com a câmera, impregnadas pelo cinema comum de representação (não só hollywoodiano).

E não é à toa que os temas escolhidos pelos dois diretores sejam por si só tão polêmicos. Pois um modelo radical de apreensão da realidade, um modelo totalmente antiburguês (as imagens ora são feias, ora tremidas, impedindo uma fruição ou algo como um acesso ao sublime) pede temas que, tal qual o Dogma estético, vão longe na experiência do espectador.

As primeiras imagens de Festen são de uma estrada. Vemos o jovem Christian a pé quando passa o carro de seu irmão Michel, acompanhado da esposa e de seus dois filhos. Eles vão para um casarão onde será realizada a festa de aniversário de 60 anos de seu pai, renomado profissional e maçom. E até o final do filme será uma estrada de mão única, já que ninguém poderá sair de lá. O isolamento e a imobilidade dão, como em Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, um caráter ontológico à família de Vinterberg. Não se trata daquela família, daquele pai e daqueles filhos, mas de uma família escandinava em geral.

Vemos inicialmente uma família bem-estruturada, bonita e bem-vestida, o pai deliberando e exigindo ("Michel deve se apresentar em cinco minutos"). A festa da família comemora sessenta anos da figura do pai, e do bom comportamento da família aos olhos da sociedade. No circuito maior, tudo ocupa o espaço que deve. Os filhos são bonitos e realizados, os pais pairam orgulhosos e cientes do cumprimento do dever, etc. Mas no circuito menor, as coisas não aparecem tão bem: Michel e a esposa brigam, ele tem uma amante que lhe demanda atenção, há algo a ser investigado no quarto da irmã morta.

Festa de Família se faz nessa luta entre o menor e o maior, sendo que o menor tenta a todo momento fazer cair a hipocrisia do maior (e podemos ver nisso também uma metáfora da luta de classes quando os cozinheiros passam a ajudar a derrubar as falsas imagens do pai), o que acaba acontecendo quando, à mesa de jantar, Christian faz um discurso intitulado "Os Banhos do Papai", onde a representação maior da figura do pai cai por terra diante da acusação de que ele molestava os filhos. A partir daí, para o poder antigo (o pai, a mãe, o avô, o filho mais velho), a única forma de salvar a família é fazer calar a insolência do irmão mais novo, o que eles conseguem fazer até que uma outra carta, dessa vez vinda do além – da irmã morta –, anuncie novamente as atitudes do pai.

Se Festa de Família tem uma força radical, ela vai muito além do mero conteúdo do filme. Pois se o Dogma 95 tem uma função, é a de fazer uma nova apreensão do real, só que desvinculado de todo jogo de representação. E se os atores desempenham com extremo rigor, é para serem filmados com uma luz fraquíssima (o que em vários momentos faz com que a fotografia seja "desagradável") e com uma câmera que treme. E se o herói do filme é Christian, que acaba com a imagem do pai, é porque esse é exatamente o propósito dos mandamentos do Dogma: acabar com a imagem do pai que tem o cinema, ou seja, a representação burguesa, "artística", teatral, do século XIX, mas que infelizmente ainda vale para o século XX.

Ruy Gardnier