Dois Retratos: Herman Slobbe e Ben Webster

por Bernardo Oliveira

Herman Slobbe: Criança Cega 2 e Big Ben são dois filmes que retiram do nosso olhar a mediocridade. Discutem com nossa inteligência, nos levam em conta. Saímos da sala de cinema pensando se realmente assistimos a documentários. Questionamos esta noção: perguntamos a que vem um documentário. Concluímos que a "fatia de realidade" que esperamos quando assistimos a esse tipo de filme, parte de um profundo equívoco. E se "devemos acompanhar tudo com a cabeça cheia de idéias", este é o filme onde questionamos a noção de que a imagem em movimento é o fiel espelho da realidade.

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Herman Slobbe narra a sensação de estar numa
montanha-russa no filme que leva seu nom
e

Faça um mapa: para compor determinados "portraits", van der Keuken estabelece um método paradoxal. Lança mão de uma narrativa que questiona a suposta linearidade dos "documentários", isto é, estabelece outros parâmetros para desvendar "verdades" que não são os do "cinema verdade". Paradoxal por que pretende tirar uma foto, mas uma foto que se agencia com momentos, coisas, estados de espírito e movimentos. É como se pudéssemos tirar fotos, mas fotos em um tempo fragmentado, aberto. Fotos abstratas, que a um só tempo buscam desvendar, duvidar, dialogar e suscitar outras observações do expectador. Deste modo, van der Keuken figura ao lado de Vertov e Flaherty, outros geniais "documentaristas" (termo abominável).

Por que fazer um mapa? Em primeiro lugar, um mapa foge da idéia totalitária de que a linguagem pode dar conta do real, como num jornal de TV. Ele está sempre a meio caminho da interpretação, mas nunca enuncia esta realidade. Logo, fazer um mapa pressupõe não enunciar verdades como um Deus, mas discutir a própria noção de verdade. Quem dá o bom exemplo é o próprio van der Keuken. Odeia os documentários da BBC, com suas belas imagens, fotos raras e convincentes e, coordenando toda esta gama de "real", uma voz imperativa a conectar A para B, sucessivamente. Desta forma, empurramos a "verdade" goela abaixo do espectador, como numa novela ou num... documentário.

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Ben Webster em Big Ben

Outra idéia que se esconde atrás do mapa ("cartografar o sujeito") é a de conexões múltiplas. Portanto, não se trata de "fotografar" o genial Ben Webster, desvelando-lhe as capacidades artísticas, estilísticas, etc. Mas contrapô-las à ira, à uma braguilha aberta, ao mau humor. Nem muito menos dizer "que criança espirituosa esse ceguinho, não?", mas dar coordenadas imprecisas acerca de uma criança que não enxerga, possui um imenso talento para manipular sons, sente raiva, medo, produz juízos apressados (quando, por exemplo, sugere que os maiores de quarenta e cinco deveriam morrer). Cartografar sugere manipular a figura através de impossibilidades, isto é, açambarcar um campo maior de significados fora do provável, compondo ao mesmo tempo uma visão pessoal e aberta a novos fluxos interpretativos.

Se não me engano é Kluge que diz (ou será Méliès? ou Rossellini? não lembro...) que o cinema "degenerou" para a ficção. Dentro deste "destino manifesto", van der Keuken se inscreve como inventor, polêmico e generoso, a buscar novas formas de dizer o indizível acerca da vida, matéria pelo qual pouco se ocupa o cinema atual.