Clint Eastwood, poeta do discreto

por Ruy Gardnier

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Alison Eastwood e John Cusack em Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal,
de Clint Eastwood.

A primeira coisa que podemos ver é o dinheiro voando. Depois dele, vemos uma figura deitada na grama, de óculos escuros, sorrindo. A câmara lenta embala essa figura, que entendemos ser Kevin Costner. Essa cena será retomada apenas no final do filme, onde compreenderemos que na verdade ele está morto e ri porque está realizado pelo sentimento do dever cumprido. Essa figura de anjo caído, de cavaleiro solitário jamais pôde encontrar referencial mais belo: uma criança abandonada pelo pai e mais tarde pelas autoridades torna-se bandido profissional a partir da primeira prisão; depois da última prisão, sua fuga desesperada será o motivo de consertar na Terra todo o mal que foi feito a ele. Ele toma de refém um menino infeliz, filho de uma religiosa fanática, e de uma hora para outra transforma-se no pai que o menino nunca teve. Que mais bela parábola de paternidade poderia um filme ser? A paternidade (e com ela a responsabilidade) se desdobra no fim do filme: o delegado, interpretado por Clint Eastwood, responsabiliza-se pelo passado do criminoso, a personagem de Laura Dern está o tempo todo presente como ícone do Poder Central (ela é de instância federal), e o próprio criminoso só está livre para morrer quando negocia uma verdadeira vida feliz para seu amigo-filho. O filme é Um Mundo Perfeito, título tirado de um dos diálogos do filme. "Num mundo perfeito, isso não estaria acontecendo", diz Laura Dern.

Nos filmes de Clint Eastwood o mundo nunca é perfeito, muito menos os personagens. Antiidealismo militante, profissão de fé na liberdade individual: todos os seus personagens são fendidos por abismos insuperáveis, mas mesmo assim partem para rumos honrados, vão até o fim naquilo que fazem. É impressionante essa constância. Nesse quesito, a figura ímpar é Charlie Parker, imortalizado na pele de Forest Whitaker em Bird. Nunca o olhar de Eastwood é paternalista ou moralizador. Não que ele não tenha uma moral cinematográfica. Ela existe e ocupa um lugar central em seus filmes: de Perversa Paixão/Play Misty For Me até Crime Verdadeiro/True Crime é a irredutibilidade do personagem à moral comum, é a inalienável liberdade que em última instância cada um tem de fazer o que bem quer, incusive o que desrespeita "a lei". Como funciona essa irredutibilidade no cinema? É isso que tentaremos ver.

Seu cinema não funciona com as mesmas características do cinema de autor. Neste, a figura do diretor é sempre elevada ao primeiro plano, seja pelo modo diferenciado com que ele trata os atores (Fuller, Truffaut), pela rigorosa construção dos enquadramentos (Hitchcock, Lang), pelos recursos expressionistas de fotografia e atuação (Tarkovski, Bergman), pela movimentação da câmara (Renoir, Welles) ou pela montagem (Eisenstein, Godard). Em Clint Eastwood não aparece fortemente nenhum desses elementos, ou pelo menos não como deveria aparecer no cinema "de arte". Existe, óbvio, o sistema-Eastwood: os atores dificilmente usam maquiagem, os roteiros são escolhidos a dedo, ele trabalha quase sempre com os mesmos profissionais de montagem e música (Joel Cox e Lennie Niehaus). Mas parar por aí seria descontentador. Pois há algo em seu cinema que incita, uma contenção extrema em respeitar o relato, um rigor absurdo em nos mostrar apenas o que é necessário, nada a mais. Quase um Bresson do cinema narrativo.

Clint Eastwood é o cineasta do discreto. O extremo rigor moral de seus personagem (outra semelhança com Bresson) coincide à perfeição com sua encenação simples e objetiva. Mais por mais simples e objetivo que Eastwood seja, ele é extremamente autor. Seus personagens sempre, em algum momento da história, são suspensos, abre-se como que uma fenda do tempo neles. Existe um tempo que cai do céu quando Steve Everett, o herói de Crime Verdadeiro vai ao encontro de sua esposa para prestar suas contas de marido traidor e pai omisso. O tempo é suspenso, como na melhor tradição do cinema direto (Cassavetes, Rivette). Mas os artifícios são diferenciados. Se no cinema direto o que conta é dar a real duração, o que é feito pela não-intervenção da montagem (plano seqüência), a operação de Eastwood é uma dilatação do tempo e um eclipsamento da ação narrativa (em sentido estrito) da história. Como esquecer do final de Poder Absoluto, quando todos os escândalos presidenciais estouram e o filme foge de tudo isso para mostrar a reconciliação enter pai e filha? E o final de Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal, em que um acertar de contas obriga um filme de tom realista a transformar-se em relato metafísico? E a cena da execução em Crime Verdadeiro? O dilatar do tempo é métier de um discreto absoluto. Pois se o cinema direto apresenta um tempo real (1 minuto = 1 minuto) que é realista, o cinema de Eastwood apresenta um tempo dilatado (1 minuto = 2, 3, vários minutos) que é igualmente realista, mas dessa vez de um realismo mágico. Nada que o associe ao cinema de Marcel Carné, por favor. A mágica desse realismo é exatamente o poder de não aparecer, de se dar como que de forma transparente, sem uma aparente intervenção autoral. De onde partimos para a fórmula sobre Mizoguchi, "O mínimo de artifício na tela exige o máximo de artifício fora dela". E esse artifício é devido ao impecável trabalho conjunto que Eastwood faz sempre com Joel Cox. O primeiro na hora da filmagem, o segundo na hora da montagem.

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Clint Eastwood e Meryl Streep em As Pontes de Madison

E o que defende esse cinema do discreto? Voltamos aqui à questão da responsabilidade. Ela é tema recorrente em seus filmes. Através dela é que os personagens podem alcançar sua salvação (o personagem Steve Everett expressa isso literalmente em Crime Verdadeiro). Suas fendas individuais só podem ser preenchidas com isso. Tomemos um filme menos regular como Heartbreak Ridge/O Destemido Senhor da Guerra: Heartbreak Ridge é o lugar onde o personagem de Clint Eastwood — aqui fazendo um militar que não consegue largar o exército — realizou atos de bravura que lhe deram inúmeras medalhas. Não poderia haver melhor título. Pois é justamente quando é dada a ele a chance de repetir Heartbreak Ridge que ele consegue a emancipação para sair do exército e casar com a ex-mulher que ele ama (o tema de Crime Verdadeiro é semelhante). Ou então tome-se o exemplo de As Pontes de Madison: uma vida imaculada e sem-graça passa a ser, resgatada por um trabalho de arqueólogo, uma vida maculada (por uma felicidade muito grande que chegou sem dar notícia), uma morte que se torna cheia de vida. No cinema de Eastwood, um simples momento pode ser a hora da salvação. É esse o momento em que tudo se dilata (como de fato), em que tudo está em jogo, quer se ganhe, quer se perca; é nesse momento que o tempo se dilata e que podemos ver a grandeza de seu trabalho.