FESTIVAL DO RIO 99
críticas dos filmes em exibição

   A VIDA NA TERRA, de Abderrahmane Sissako

Mali, 1998


A beleza de um filme como A Vida na Terra não se explica com palavras num papel. Ele foi feito para ser visto/ouvido/vivido. É um filme absolutamente sensorial e muito pouco racional. Tendo sido proposto como parte da série "2000 visto por...", filmes sobre a noite da passagem do milênio, ele é o oposto completo de O Muro, outro filme da série já exibido aqui. O que este tinha de excessivo, óbvio e descuidado, parecendo um trabalho de pura obrigação contratual, este tem de trabalho de amor, de artista de verdade, belíssimo.

O filme começa com um longo e intrigante plano que passeia pelas prateleiras de um supermercado. Um homem sobe as escadas rolante com um grande urso de pelúcia. Corta para uma árvore frondosa no meio da planície africana. Como a narração indica, e nós logo entendemos, o pouco que o filme tenta ter de história é isso: um exilado africano em Paris que volta para seu país de origem para a passagem do milênio. A partir disso, poderia se esperar mil clichês dos conflitos deste personagem de volta ao seu continente, das adaptações, da recepção, dos hábitos. Mas o filme não é sobre este personagem. Apenas se utiliza desta premissa para fazer uma investigação poética da terra de origem, a região de Sokolo, às vésperas do século XXI. O filme se estrutura em cenas soltas, sem continuidade, sons, narração poética-literária, muita música, não tentando contar UMA história, mas sim traçar um painel desta terra. Terra dividida entre as distantes influências da civilização, que ela precisa consumir desde a colonização européia (o que traz tanto avanços tecnológicos como dependência externa e miséria), e por outro lado a natureza exuberante que a cerca, a força do milenar, do que sempre esteve lá. Um tema recorrente do filme é a comunicação precária entre esta terra e o resto do mundo, simbolizada pelo único telefone do local que nunca funciona como se espera. É um lugar que não se faz ouvir. Por outro lado o rádio revela o resto do mundo, da mesma forma que age como passatempo para os homens ociosos.

Dentro do painel que é criado, fica explícito o quão insano são alguns expedientes da vida urbana moderna, como a própria "passagem do milênio". Paradoxalmente (pois sua simples existência como filme se deve a esta euforia), o diretor mostra que para aquelas pessoas isso não faz a menor diferença. Nós nem vemos a noite do reveillon no filme, um golpe de gênio. O rádio anuncia os preparativos em Paris, depois do fim do dia há um corte, um novo amanhecer com as mesmas atividades (humanas e animais), e mais uma vez é o rádio que nos diz que já estamos em 1º de janeiro de 2000, e conta como foram os festejos em Paris. Para aquele local (e, pensando bem, para todos nós), não faz a menor diferença. Os problemas são os mesmos, as alegrias também. Um morador só pede que o ano novo não seja tão penoso. Não por eles, mas pelas crianças.

O filme pede do seu espectador uma placidez, uma mente aberta que passeie por cada plano desvendando lentamente as belezas e agruras da paisagem. Ao mesmo tempo uma arguta percepção de que aquele conjunto de sons e imagens, ao contrário do que Shakespeare disse, significa muito. Sua beleza magnética mostra em grande parte o que só cinema pode fazer. Une, como pedia Almeida Salles, a realidade física e o espiritual, e dá grande prazer por isso. No meio de tanta poesia duas frases ficam com o espectador: a primeira que diz que "um homem que grita não é um urso que dança", referindo-se ao excesso de imagens e de espetáculos do mundo moderno, a partir do qual teríamos perdido a sensibilidade para o sofrimento e para a realidade. A outra é a "mensagem final" do diretor, que mesmo com muito sofrimento daquele povo, que mesmo tão maltratado pela colonização européia (outra corajosa intervenção: critica a França num filme pago por esta), o homem ainda não está esgotado como possibilidade, que seu trabalho na Terra apenas está começando, e que a crença na humanidade tem sim que imperar. E o que mais se pode dizer de um filme que afirma isso e tanto mais ao longo de pouco mais de uma hora, com imagens e sons?? Apenas que atingiu o máximo do que o cinema pode alcançar, e que ao fazê-lo prova sim a sua própria teoria: uma raça que cria algo assim ainda tem muito a fazer de bom.

Eduardo Valente